Durante vinte e cinco anos, um maronga fechou-se num quarto com um propósito “quixotesco” : fazer um dicionário ronga/
E entretanto cantava. E sonhava. E, em dando, gravava: voz grave, talvez nem tanto, muita tristeza, aquela tristeza que só vai na
Ou em Bilibiza. Naqngade, a cidade do futuro, sonho da nossa juventude no delirium tremens de Samora, as consultas no HCM a sete Meticais e meio, os medicamentos de borla, os magarefes a fazer com as nossas mulheres aquilo que não aceitavam que as fizessemos, a troco de um quilo e meio de carne de segunda com osso, os padeiros, as jornadas de trabalho voluntário obrigatório, a dialéctica (análise/síntese/análise) as recepções no “Tapete Vermelho”, o Big Brother a pentear o cabelo ralo com um pente vermelho, ralo, a assobiar Ife Ana Frelimo Zoona, as tardes de sorna e gin made with melaço no quintal da tia Maria dos Anjos, o pessoal do Kuxa Kanema, o pessoal da Tempo, algum do Notícias, Domingo não havia, SAVANA, mediaFax, Demos, O País, o Imparcial, o Embondeiro, o que tal e tal não
Havia era um túnel no fundo da luz. “Havia uma pedra no meio do caminho/ No meio do caminho havia uma pedra”, Carlos Drummond de Andrade, brasileiro de sangue negro que nem eu.
Ele morreu com menos de 50 anos. Ele morreu de malária cerebral. Se bem que é possível um artista ronga, de sangue ronga, morrer de malária no século XXI.
Ele chama(va) -se Baptista Panguana.
Numa tarde de sexta-feira, Setembro do ano passado, ele pôs um monte de papel sebento à minha frente, na esplanada do Goa, e disse-me: “Fernando: recuperei a minha obra”.
Era um dicionário ronga/ português.Português/ronga. Tinha proposto à imprensa universitária, da universidade pública Eduardo Mondlane, a sua edição.
“Sim”, disse a UEM, “podemos fazer isso.
Mas não vamos dizer que o dicionário é seu.
É património cultural da nação, cê tá vendo ?”.
Às três da tarde de sábado passado, 19, fui enterrar o Ermelindo Mwya, Coronel da Frelimo na reserva. Amigo daqui, do lado
Duas horas antes, na mesma capela do HCM, tinha enterrado o Baptista Panguana.
Sem lágrimas.
Lembrei-me apenas que lágrima em ronga se diz nyembeti.
Fernando Manuel – MEDIA FAX – 22.03.2005