Por estes dias temos andado a ler e a ouvir vozes de quem tem estudado este país, a sua política e as suas gentes. As leituras foram feitas sobretudo ao nível de algumas Sorondas (Revista de Estudos Guineenses, publicada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas - INEP). As entrevistas (actuais e antigas) dão voz a especialistas conhecedores desta terra. Assim sendo, daremos a conhecer nos próximos dias parte (uma ínfima parte) do pensamento de homens como Álvaro Nóbrega, (português, assistente do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e mestre em Estudos Africanos), Carlos Lopes (guineense, sociólogo e diplomata das Nações Unidas), Corsino Tolentino (cabo-verdeano - nascido na Guiné-Bissau -, sociólogo e diplomata) e Huco Monteiro (sociólogo e ex-ministro da educação e dos negócios estrangeiros da Guiné-Bissau).
Publicaremos excertos (frases registadas no nosso bloco de notas) dessas conversas e desses artigos ao longo dos próximos dias. São certamente notas que reduzem o pensamento de quem as proferiu, mas vale a pena arriscar o exercício. Perdoe-se-nos a ligeireza com que abordamos o assunto, mas não há tempo para mais.
CARLOS LOPES
Carlos Lopes nasceu na Guiné-Bissau. É sociólogo, Ph.D. em História pela Universidade de Paris-1 e especialista em desenvolvimento e planeamento estratégico. Iniciou a carreira nas Nações Unidas em 1988 como economista do desenvolvimento. Em junho de 2003, foi designado pelo secretário-geral da entidade, Kofi Annan, como seu representante no Brasil, que acumula também as funções de representante-residente do PNUD.
Autor ou organizador de 20 livros, Lopes já lecionou em várias universidades, como a de Lisboa, Zurique, Cidade do México, São Paulo e Rio de Janeiro. Ajudou a criar organizações não-governamentais e foi consultor da Unesco, da Sida (Autoridade Sueca para a Cooperação e Desenvolvimento), do Gret (Grupo de Pesquisa e Estudos Tecnológicos de Paris) e da Comissão Económica das Nações Unidas para a África.

Carlos Lopes procura aqui demonstrar que a esperança média de vida da população guineense influencia o evoluir político e social do país. Excerto de uma palestra sobre democracia promovida pela Caritas da Guiné-Bissau.
A Guiné Bissau é um país onde a idade média da população é de 35 anos. É uma população extremamente jovem. Quando temos uma pirâmide etária como a da Guiné podemos dizer que temos uma situação de uma grande dinâmica social: há muitas transformações que vão ter lugar pelo simples facto de a Guiné-Bissau ter uma população tão jovem.
A esperança média de vida da população de um país é muito importante do ponto vista simbólico e psicológico, da psicologia social. Nós na Guiné-Bissau temos uma das esperanças mais baixas do mundo. Ronda os 40 anos. O indivíduo espera viver muito pouco.
É uma esperança vida muito reduzida. Quanto mais estudo a realidade de vários países, mais chego a conclusão de que muito do comportamento social está relacionado com a esperança da vida. Quando a esperança de vida é relativamente baixa, as pessoas a partir de determinada da sua vida tem que fazer opções porque a esperança de vida psicológica é limitada. Isto explica o comportamento de muitos quadros guineenses, que a um dado momento sabem que têm que fazer algo. Sabem de uma forma intuitiva, porque tem noção que a sua esperança de vida é baixa e eles têm que tomar decisões importantes para a sua vida, para a sua família. A partir dos 25 anos o guineense começa a tomar decisões importantes. E seja ele um quadro seja ele um cidadão que trabalha na bolanha. Isto explica parte do comportamento psicológico dos guineenses.
Outro elemento profundo é o das simbologias. As pessoas reagem muito aos símbolos. Eles são muito importantes. E quando se faz desenvolvimento há uma simbologia associada ao desenvolvimento. Quando se está numa lógica completamente diferente a simbologia é outra. Para muitos dos quadros e para muita da classe média guineense a simbologia manteve-se como a simbologia da arma. Há uma valorização demasiado grande da arma, do militar. Uma valorização muito grande, indirectamente, da violência, como forma de resolver os problemas. Esta simbologia está muito ligada à insegurança das pessoas.
A sociedade civil segundo Carlos Lopes
A sociedade civil guineense tem-se manifestado, mas esse movimento não tem sido catalizador. Não se nota que depois destas manifestações o número de aderentes e os contestatários tivessem aumentado.
Tenho bem presente na cabeça a ideia do que se passou no Zimbabué, onde fui representante das Nações Unidas. Ali vi crescer a sociedade civil de uma forma muito estruturada e organizada. Hoje em dia vemos que se não for por alterações no código eleitoral e na forma de conduzir as eleições não há nenhuma hipótese de o regime no poder se manter, porque houve um crescimento da sociedade civil e ela é que acabou por influenciar a forma como os partidos da oposição se organizaram e se desenvolveram.
O que se passa na Guiné-Bissau é que existem algumas manifestações, mas não são manifestações de uma importância capaz de fazer abalar as estruturas do poder. E essas manifestações não acontecem porquê? Porque existe muito medo na Guiné-Bissau. Medo de duas coisas. Medo dos militares porque o poder ainda reside neles. Isto tem muito a ver com a história do país e com o facto de o PAIGC durante muito tempo ter permanecido um partido militar, controlado pelas FA. E os guineenses têm ainda outro medo: os políticos. Eles são tão iguais que é melhor lidar com o mal que se conhece do que com o mal que não se conhece.
Carlos Lopes e o papel dos quadros guineenses no desenvolvimento do país
Qual o papel dos quadros da Guiné-Bissau, sobretudo dos que estão no exterior, no sentido de provocar uma elevação do nível da intervenção na sociedade guineense e promover o desenvolvimento? - pergunta o sociólogo.
Nós [os quadros formados pelo INEP] representámos um modelo, representámos a esperança de fazer as coisas com uma certa ética. Mas isso foi destruído. Por quem? Pelos próprios regimes. Pelos próprios políticos.
Simbolicamente foram os senegaleses que ocuparam o edifício do INEP no 7 de Junho e destruíram os arquivos, mas antes mesmo disso acontecer, existia demasiadas pressões e influências para que essa capacidade de analisar e de ser diferente não pudesse alargar-se a um horizonte muito grande.
O mais trágico é que muitas das pessoas que saíram da escola do INEP, chegaram ao poder e desiludiram. Muitos mais dos que as pessoas imaginam. Não só os quadros permanentes mas os colaboradores também. Em muitos casos desiludiram. Em muitos casos ficou manchada essa tradição do INEP. Isto é, quando se deu a chance a alguns deles de demonstrarem essa ética, essa capacidade, eles desiludiram.
Os guineenses têm uma grande capacidade de resistência. Isso tem a ver com o capital social existente na sociedade guineense. Esse capital social ainda lá está, não desapareceu desde a guerra de libertação. Esse capital social que foi fundamental para que a luta de libertação nacional tivesse o sucesso que teve. Ela foi feita com os mesmos analfabetos. Não havia mais analfabetos hoje do que ontem. Foi feita com as mesmas dificuldades económicas, pelo menos pelos agentes que participaram na luta. O que é que lhes deu a capacidade civilizadora - como lhe chamou Amílcar Cabral - para que eles interviessem e conseguissem civilizar a sociedade? Foi um conjunto dedicado de quadros que conseguiu organizar as energias para algo de positivo.
É possível organizar o capital social guineense para que se faça algo de positivo. A classe média, os intelectuais guineenses têm um papel fundamental em acabar com o oportunismo. Infelizmente o oportunismo está bem presente no meio da classe média e da elite guineense. Enquanto esse oportunismo não for varrido das nossas relações, dos nossos desejos, das nossas ambições, não haverá uma transformação da Guiné-Bissau.