PUBLICO - 12.4.2005
O Governo legítimo da Guiné-Bissau não foi tido nem achado neste regresso meteórico de Nino Vieira
O ex-Presidente da Guiné-Bissau Nino Vieira, que abandonou o território guineense em 1998, protegido por tropas portuguesas, na sequência de um levantamento militar contra si, conseguiu um feito notável para um foragido à justiça do seu próprio país: meteu-se há dias numa aeronave militar, rodeado de tropas estrangeiras, não pediu licença para sobrevoar o espaço aéreo guineense e aterrou onde quis.
Foi fotografado em amena cavaqueira com Kumba Ialá, o homem que teve a ousadia de lhe chamar assassino e corrupto muito antes de 1998, quando isso era praticamente impossível na Guiné sem pagar um preço elevadíssimo.
Nino Vieira conseguiu fazer tudo isto sem ser preso ou sequer incomodado por algum episódio mais desagradável. A indecorosa festa que Kumba e Nino fizeram um ao outro não podia ser mais representativa da nova tragédia que se avizinha para a Guiné-Bissau, traduzida na aparente reconciliação de dois déspotas que parecem ter acordado entre si a divisão do país em zonas de influência para cada um, numa altura em que têm inimigos comuns. Só esse combate lhes interessa, porque o país e o povo há muito deixaram de ser prioridades para estes dois.
O Governo legítimo da Guiné-Bissau não foi tido nem achado neste regresso meteórico de Nino Vieira, mas suspeita-se que tal só terá sido possível com a conivência das mesmas estruturas militares que o desalojaram à força do poder. Mais: tal viagem só terá sido possível com o conhecimento do Governo português, responsável pela concessão do
estatuto de exilado político que Nino Vieira tem em Portugal. A confirmar-se que o Governo de José Sócrates teve conhecimento desta viagem destabilizadora do processo democrático da Guiné-Bissau, que sentido faz manter o estatuto de exilado político a este senhor? Este será daqueles silêncios que vão queimar no futuro próximo, caso o Governo socialista não produza esclarecimentos sobre o episódio.
Nino Vieira não só tem de responder na justiça do seu país num processo por suspeitas de tráfico de armas, que esteve na origem dolevantamento militar de 7 de Junho de 1998 e que conduziu à sua deposição, como certamente terá de esclarecer como é que permitiu a entrada de militares estrangeiros no país, pelas mortes de pessoas nesse conflito, e pela perda de bens de muitos guineenses. Isto para não recuar muito no tempo, porque se fossem abertas as feridas do passado, sobretudo as dos anos de repressão da segunda metade da década de 80, marcados por mortes bárbaras, entre as quais as de Paulo Correia e Viriato Pa, respectivamente, primeiro-ministro e procurador-geral da República, então Nino Vieira teria muito para contar.
Quem se deve lembrar bem destes tempos é Mário Soares, Presidente da República à época dos factos, que se envolveu numa campanha internacional por um gesto de clemência em relação àqueles dois prisioneiros políticos mas não foi escutado. Ninguém era escutado em Bissau nesses tempos de barbárie em que o poder era a mais implacável e mortal das armas ao serviço de Nino Vieira. E é também com isso que o Estado português está a ser cúmplice. EDUARDO DÂMASO