27-04-2005 | Diário Económico |
Jürgen Stark (Vice-presidente do Bundesbank)
A comunidade internacional tem diante de si um enorme desafio para poder cumprir os Objectivos do Desenvolvimento do Milénio (ODM) até 2015. Existe, aliás, um consenso alargado de que será necessária ajuda externa para honrar esses mesmos compromissos. Neste contexto, a questão que se coloca não é aumentar essa ajuda e, sim, saber qual a melhor forma de a financiar.
A procura de fontes de financiamento adicionais e mais estáveis, para poder atingir as metas do ODM, já deu origem a mecanismos financeiros inovadores e ao alívio da dívida de certos países, numa iniciativa que muito deve ao Secretário do Tesouro britânico, Gordon Brown.
Todavia, o conjunto de esquemas proposto para incrementar os meios de ajuda ao desenvolvimento levanta questões pertinentes sobre o equilíbrio imprescindível entre as necessidades objectivas e o financiamento das mesmas, que se quer sólido e eficiente.
Os países doadores, bem como aqueles que recebem o seu apoio, devem assegurar uma forte consistência, tanto ao nível do financiamento como da capacidade para absorver essas ajudas financeiras. Devem ainda garantir que os financiamentos oficiais adicionais e o eventual alívio da dívida não irão distorcer futuros incentivos nem criar deturpações de ordem moral. As ajudas financeiras devem, assim, ser canalizadas para os países com bom desempenho e não apenas para aqueles que se debatem com uma dívida elevada.
Acresce que as propostas financeiras, com vista ao cumprimento do ODM, deverão ser discutidas de um ponto de vista muito concreto, isto é, na perspectiva do banco central. As melhores soluções passam, assim, pelo aumento das ajudas dos países ricos e por uma liberalização do comércio mais ambiciosa do que a actual. Estas opções afiguram-se politicamente insustentáveis no curto prazo, muito embora -segundo estimativas do Banco Mundial - uma conclusão idónea para as actuais negociações comerciais, sob a égide da Organização Mundial do Comércio, possa resultar num contributo de 350 mil milhões de euros anuais aos países em desenvolvimento até 2015.
O mesmo sucede quando se visa aumentar as ajudas financeiras, uma vez que a classe política exige soluções que não sejam sentidas pelos contribuintes - isto é, pelos eleitores -, nem contabilizadas nos orçamentos nacionais. Sublinhe-se, contudo, que a escolha de soluções opacas para contornar o escrutínio público em nada honra o sistema democrático. Além disso, as chamadas soluções financeiras inovadoras podem, igualmente, subestimar a atribuição de responsabilidades - que deverá ser clara e inequívoca - na angariação e utilização dos dinheiros públicos.
Inerente à expressão mecanismo financeiro inovador surge, pois, a ideia de facilitismo na concretização dos objectivos do ODM. No entanto, apenas se pode falar em três vias possíveis para incrementar as ajudas financeiras ou aliviar a dívida: subir os impostos, aumentar o endividamento - ou seja, sobrecarregar fiscalmente as gerações futuras - e/ou aplicar a expansão monetária. Uma das propostas implica taxar as transacções financeiras nacionais e internacionais, outra passa por aplicar os Direitos de Saque Especiais (DSE) - um activo financeiro internacional criado pelo FMI -e outra ainda implica recorrer às reservas de ouro do Fundo. Nenhuma é, porém, suficientemente apelativa.
A adopção de taxas sobre as transacções financeiras só surtiria efeito se aplicada à escala global, pelo que não é realista contemplá-la como solução. Mais, as taxas levariam a uma subida dos custos - a transferir para os investidores -, que reduziriam, por sua vez, o volume das transacções, incrementando a volatilidade do mercado e reduzindo a sua liquidez.
A aplicação dos DSE também resultaria inapropriada, visto estes representarem a própria liquidez e só poderem ser aplicados no caso de uma necessidade global difícil de provar nas actuais circunstâncias, devido à elevada liquidez e às condições ditas fáceis que hoje imperam nos mercados de capitais internacionais. Todavia, nem mesmo uma necessidade global permitiria recorrer aos DSE - que são parte integrante das reservas de cada país - para a liquidação de despesas orçamentais. Financiar as ajudas através dos DSE, ou substituir as ajudas financiadas pela via orçamental por este tipo de verba , só é comparável ao financiamento de défices orçamentais através do dinheiro dos bancos centrais.
Em qualquer dos cenários, a aplicação de novos DSE obriga a um apoio de 85% dos membros do conselho de administração do FMI, façanha aparentemente impossível de concretizar num futuro próximo, uma vez que os principais accionistas estão contra esta medida. Com efeito, nem sequer a emissão especial de DSE acordada em 1997 - e estabelecida por consenso entre todos os membros do Fundo para que cada um pudesse receber uma participação equitativa de direitos
cumulativos - foi ainda activada, devido à forte oposição que grassa no conselho.
Por ultimo, a proposta que visa dar melhor uso às reservas de ouro do FMI, para financiar os custos do alívio da dívida, tem por meta angariar para cima de 8 mil milhões de dólares. Aos actuais preços de mercado, tal opção implicaria a venda de um quarto das reservas do Fundo, no valor de 103,4 milhões de onças. Ora, estas reservas representam um importante activo escondido , que confere peso e solidez ao balancete do FMI. Os credores da instituição consideram-nos, aliás, uma espécie de garante contra o aumento dos riscos subjacentes à carteira de crédito do FMI.
Isto deve-se, em grande parte, à facilidade com que certas economias têm acedido a essas mesmas reservas nos últimos dez anos. Acresce que a sua quota de responsabilidade no total da dívida externa atingiu níveis sem precedentes, agravados pelo seu carácter sistémico. Devido à conjugação destas duas tendências, uma larga fatia dos créditos acabou por se concentrar apenas nos maiores contribuintes. Assim, o recurso às reservas de ouro do FMI para aliviar mais a dívida e fazer face ao aumento dos riscos, não só pode ameaçar a integridade financeira da instituição como contradiz a recente decisão de incrementar o grau de precaução nos seus balancetes.
As ajudas ao desenvolvimento devem, pois, ser financiadas em termos reais e de forma respeitável, sem recorrer a expedientes que obriguem a despender o dinheiro do banco central ou ponham em causa a integridade financeira do FMI. As ajudas em questão devem ser financiadas, de preferência, através dos orçamentos nacionais dos países doadores de forma transparente e democrática. A inovação não deve ser um eufemismo de falta de transparência, ineficácia ou corrupção.