Albano Cordeiro*
A propósito da reforma constitucional prevista no Egipto.
É modestamente que se tenta contribuir à elaboração dum « modelo moçambicano de democracia » que não destabilize o quadro actual das forças politicas em presença.
Um exemplo construtivo de regime "democrático" que garante a estabilidade política por decénios, é o que está em vigor no Egipto. Houve Gamal Abdel Nasser, depois Anouar El Sadate e, de há 19 anos para cá, Hosni Moubarak. Três homens, mas praticamente o mesmo regime desde o início dos anos 50.
Acontece porém, que, apanhando a opinião pública informada de surpresa, o Presidente egípcio anunciou no passado dia 5 de Março, numa banal intervenção numa das Universidades do Cairo, que as próximas eleições presidenciais, em Setembro 2005, teriam lugar ao sufrágio universal e concorreriam vários candidatos. Isto é, todas as aparências duma competição democrática. Até agora as eleições presidenciais egípcias punham "em concorrência" um só candidato.
Mas não era tão antidemocrático como parece. De facto, vários candidatos podiam apresentar-se à máxima magistratura. Só que deviam depor a candidatura na Assembleia Nacional e esta aceitava ou não a candidatura. Como o partido governamental (Partido Nacional Democrático, naturalmente) dispõe sistematicamente da maioria absoluta, o que se passava depois era um jogo de criança. No fim desta selecção, ficava invariavelmente UM candidato, o presidente em exercício, enquanto estivesse vivo, ou, no caso de dever eleger um sucessor, o candidato seleccionado era o que tivesse sido proposto pelas altas esferas das Forças Armadas.
Este sistema porém era alvo de críticas. Bem avisado foi o Presidente Hosni Moubarak, de reforçar o lado democrático das próximas eleições presidenciais propondo uma revisão constitucional. Suficientemente importante para que ela inspire, nos órgãos de comunicação social, a expressão « Segunda República ».
Num artigo intitulado « O diabo esconde-se nos detalhes », o semanário Al Ahram (Cairo, 3-9/3/05) desvela em o teor desta revisão constitucional. Os pormenores poderão não corresponder exactamente ao que ficará estipulado na revisão constitucional e nos regulamentos que acompanharão esta revisão.
Prevê-se assim que os candidatos deverão apresentar assinaturas de membros dos corpos eleitos da Nação, Entre deputados, senadores (membros da Câmara Alta, Shura Council) e conselheiros municipais, o total destes representantes da Nação e das vilas é de 3806. Os candidatos deverão recolher assinaturas de 20% destas personalidades eleitas. Isto é, 762 assinaturas, que deverão ser recolhidas em mais de metade das 26 províncias (Governatorates) do país.
Tendo em conta que estas personalidades pertencem na quase totalidade ao partido governamental, os candidatos que se apresentem contra o candidato « oficial », deverão « convencê-las » com argumentos em forma de folhinhas de papel, geralmente verdes. Uma operação que deverá repetir-se centenas e centenas de vezes. Além disso, os candidatos devem ser responsáveis de partidos representados no parlamento (eles são quatro), ou leaders políticos reconhecidos destes partidos. E de idade não inferior aos 40 anos.
Possíveis candidatos interrogados faziam notar que eles nunca disporiam dos meios financeiros necessários para uma campanha presidencial. E que devido ao não acesso aos meios de informação, eles não poderiam superar a barreira do anonimato pois as massas populares os desconhecem.
O articulista (Gamal Essam El-Din) concluía que a pessoa que poderia entrar em todos estes critérios é o Presidente actual, Hosni Moubarak.
Convém acrescentar que este não será certamente o cenário das próximas eleições presidenciais. A operação cosmética a que se livra Moubarak é um serviço prestado à Administração Bush. Esta continua encravada no Iraque, o seu plano de « libertar » o Grande Médio Oriente (do Marrocos ao Paquistão), substituindo a « democracia » às tiranias, tem dificuldades em aparecer credível. O assassinato do ex-primeiro ministro libanês Hariri faz entrever um reforço das posições dos EUA, pois a atribuição do assassinato aos serviços secretos sírios enfraquece posição da Síria, aliada regional do Irão. Mas, globalmente, o plano da Administração Bush, não avança. Assim, Moubarak, um dos regimes caracterizadamente pro-americanos da região, vem dar-lhe uma mão. Vamos lá a isso! Eleições democráticas ? Não há problema !
Nesta linha, parece evidente que Moubarak, porém, não se apresentará desta vez como candidato único. Senão pôr-se-ia um problema de credibilidade da reforma constitucional. A astúcia desta reforma é a de permitir seleccionar um ou um pequeno número de candidatos que estejam «à altura» do candidato « oficial » sem o ameaçar nas urnas. Assim, o presidente poderá ser eleito respeitando as formas de uma democracia pluralista.
Em Moçambique, a perda de credibilidade do processo eleitoral é notória. Há necessidade duma reforma eleitoral, mas necessariamente inovadora, porque o contexto actual e a história da sociedade egípcia são bastante diferentes.
Eleições democráticas que façam esquecer os episódios não gloriosos das eleições de 2004 ? Não há problema. Há mil maneiras de fazer eleições “democráticas”. Ao trabalho !
* Economista e sociólogo, recém-pensionado, observador pela UE das eleições de 1994, e pertence à Liga Moçambicana de Direitos Humanos.