Em Moçambique, Samuel foi vítima de um acto macabro: deceparam-lhe o pénis. Viajou para Portugal à procura de uma nova vida. Encontrou novo fôlego. Renasceu. Agora, chegou a hora de dizer adeus. E obrigado.
CORREIO DA MANHÃ - 10.04.2005Samuel, 10 anos, já iniciou a contagem decrescente dos dias que faltam para o regresso a casa. No seu corpo habita um turbilhão de sentimentos. Por um lado, vive a ansiedade do reencontro com a mãe e a irmã que deixou em Chimoio, Moçambique, há cinco meses. Por outro, o seu pequeno coração murcha quando antecipa o momento do adeus a todos aqueles que em Portugal lhe devolveram a alegria de viver e viver. As horas que lhe restam em solo português são passadas com amigos, em festa, na casa de António e Júlia Alves, um dos casais que o acolheram. Para o último passeio o menino moçambicano foi à praia da Figueira da Foz, onde ganhou asas e voou pelo areal debaixo de uma forte chuvada. E nem o pavor do mar lhe roubou o sorriso de orelha a orelha. Samuel era o espelho da felicidade.
O dia 1 de Outubro de 2003 foi o dia mais negro na sua ainda curta história de vida. Com apenas nove anos, foi raptado por dois homens, alegados traficantes de órgãos humanos, que o conduziram ao mato e lhe deceparam o pénis – segundo reza a lenda, os homens mais velhos que comam os órgãos genitais de rapazes novos recuperam o vigor de outros tempos. Apesar de mutilado, Samuel encontrou forças para fugir. Foi encaminhado para o hospital de Chimoio, primeiro. E transferido para o hospital Central de Maputo, depois. Pouco puderam fazer por ele. Os tempos que se seguiram foram tempos de dor, de revolta. Vezes sem conta saiu de casa para se refugiar num lugar que só ele conhece.Vezes sem conta isolou-se das pessoas, do mundo. O menino deixou de sorrir. Ficou cabisbaixo, desnorteado. O pai, Jorge Luís, 35 anos, viaja até esses tempos. “O meu filho estava a sofrer muito. Tornou-se num rapazinho fechado e triste. Fugia e ninguém sabia onde o encontrar. Ele já não sabia se era homem ou se era mulher. Foi uma fase muito complicada.”
À ESPERA DE UM MILAGRE
Só um ano depois é que Samuel começou a ver uma luz ao fundo do túnel. Teresa Nogueira, ex-presidente da Secção Portuguesa da Amnistia Internacional (AI) desembarcava em Maputo para coordenar uma missão sobre Educação e Direitos Humanos. Por essa ocasião, cruzou-se com Alice Mabota, presidente da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos, que lhe deu conta do caso do Samuel. Na altura, ninguém imaginava que a recuperação do órgão genital do rapaz fosse possível.
De regresso a Portugal, Teresa Nogueira entra em contacto com o professor Gentil Martins, prestigiado cirurgião pediátrico do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. O médico, impressionado com a barbárie vivida por Samuel, prontifica-se a tomar conta do caso. Pouco depois, as boas novas chegavam a Moçambique. Com a ajuda da Liga Moçambicana dos Direitos do Homem e da Amnistia Internacional, Samuel recebeu guia de marcha para viajar para Portugal. Aguardava-o uma equipa do Serviço Pediátrico do Hospital Dona Estefânia, pronta a proporcionar-lhe uma vida melhor. Um final feliz para a sua triste história.
UM MENINO NOVO
Após uma maratona de exames e análises pré-cirúrgicas, chegava finalmente o dia da primeira operação – 10 de Dezembro de 2004. A ansiedade era grande. Mas Samuel era um rapaz calmo, sabia que era para o seu bem. Felizmente, tudo correu pelo melhor. Contudo, para ver o seu pénis perfeitamente reconstituído, Samuel teve que se submeter a uma segunda intervenção, efectuada a 7 de Janeiro de 2005. Foi mais um sucesso. Nem sequer foi necessário colocar uma prótese para que Samuel possa levar uma vida normal. Foi um verdadeiro milagre. “Em princípio tudo aponta para que a situação esteja normalizada. Corrigiu-se o que se podia. É óbvio que ele ainda irá desenvolver a puberdade e não posso fazer perspectivas daquilo que irá acontecer. Para já, a certeza que tenho é de que do ponto de vista urinário e sexual a situação dele está resolvida”, explica o cirurgião Gentil Martins, que na opinião de Jorge Luís, pai de Samuel, é um Deus. “Costumo dizer que há um Deus no Céu que encontrou um Deus na Terra que é o Dr. Martins”, afirma. Depois justifica a sua crença: “Foi tudo muito rápido. O Dr. Martins utilizou a ciência dele e fez acelerar todo o processo. Pensávamos que isto ia demorar mais tempo. Mas o Dr. Martins conseguiu e o menino está bom. Agora o Samuel é um menino novo, já não tem problemas, está muito feliz”, confessa, algo emocionado. “Sinto-me muito orgulhoso por ele. Voltou a ser o menino que era”, acrescenta este pai, incansável, sempre atento às traquinices do filho. “Estou muito contente”, confirma Samuel com palavras parcas. O ‘outdoor’ publicitário com mulheres semi-nuas rouba-lhe a atenção. “Olha!”, aponta, partilhando desta forma o seu entusiasmo.
Com maior à-vontade na forma de abordar o assunto, António Alves, 61 anos, que acolheu Samuel na sua casa da Figueira da Foz, garante: “O sexo dele ficou óptimo. Fizeram um trabalho fora de série. Ando sempre a vigiá-lo para ver se ele aplica correctamente a pomada de cicatrização e está tudo direitinho”. De certa forma, António viu--se obrigado a fazer este tipo de acompanhamento, já que as relações entre pai e filho na cultura desta família moçambicana é bem diferente daquela a que estamos habituados em Portugal. “A mentalidade deles não tem nada a ver com a nossa. São muito frios no aspecto sentimental.” E exemplifica: “O Jorge quando cá chegou era incapaz de dar um beijo ao filho. Não ponho em causa o amor que sente por ele. Aliás, tudo o que o Jorge tem feito pelo Samuel tem sido uma grande demonstração de amor. Têm apenas uma forma diferente de amar. Mas a verdade é que desde que cá estão é isto que se vê. Mudaram muito a forma de lidar um com o outro”, diz António, direccionando o seu olhar para Samuel, que naquele preciso momento se atira para as cavalitas do pai com ar reguila. Jorge, meio sem jeito, derrete-se.
Um sofrido adeus A hora da despedida aproxima-se tão rápido quanto as ondas que tomam conta do areal. Para trás ficam cinco meses. Muitas emoções. Ligações fortes. “Agradeço muito por o meu filho estar bom e por todos me terem recebido tão bem. Fomos muito bem tratados. Estarei para sempre grato. Nunca vou conseguir agradecer o que fizeram por nós”, diz Jorge, desviando o olhar, onde lágrimas silenciosas se misturam com os pingos da chuva que lhe escorrem pelo rosto. “Deram-nos tanta coisa. Agradeço tanto a todas as pessoas. Mas não esqueço o senhor Alves e a família que nos trataram como filhos. Estarei eternamente agradecido”, acrescenta. Também António não consegue esconder o aperto que esta despedida lhe provoca na alma. Nunca imaginou que a reportagem de televisão a que assistiu, certo dia, no conforto do seu lar, levasse a tamanha reviravolta na sua vida. “Acolher o Samuel ocorreu-me logo que vi toda aquela crueldade que fizeram com ele. Mexeu muito comigo. Pensei logo ‘vou ter que deitar a mão a este miúdo’”, recorda.
Meses depois, António recebia-o em sua casa, juntamente com o pai, acabando por criar com eles fortes laços de amizade. “Este adeus vai custar-me muito, só de falar fico emocionado. O miúdo é de uma meiguice para nós que é uma coisa louca. Extraordinário. Tem as suas atitudes de miúdo, com uma determinada rebeldia, mas isso passa-lhe. É um miúdo que pede desculpa, sabe reconhecer quando erra”, conta António, garantido que o Samuel de hoje nada tem a ver com o Samuel que aterrou na Portela há cinco meses. “Este miúdo estava num buraco. Era um menino infeliz. Chegou aqui muito introvertido. Também podia ter a ver com o facto de vir para um lugar estranho, com pessoas que lhe eram estranhas, mas havia nele uma tristeza profunda. O que é certo é que ele agora está extrovertido, é demais, soltou-se e ainda bem”, diz António com palavras embrulhadas de orgulho.
No que se refere a Jorge, António faz questão de contar um episódio que lhe tocou e fez chorar. “O Jorge tinha um problema de visão, não via ao longe, e fomos a um especialista. Pelo caminho para Coimbra fui-lhe contando que em tempos tinha tido um problema grave de saúde, um problema que me poderia inclusive ter levado à morte. O Jorge só disse ‘o que é que teria sido de nós se o tio tivesse morrido!? Tinha que estar cá à nossa espera’. Como é possível aquele homem que vem lá do mato ter uma saída destas. Deve ter sido uma coisa mesmo sentida. É claro que me pôs a chorar.”
CORAÇÃO DIVIDIDO
Os sentimentos de Samuel, por sua vez, estão baralhados. O rapaz tem noção que está de partida, mas na sua inocência de criança consegue encontrar saídas para não sofrer de antecipação: “Eu vou para Moçambique, mas depois venho cá muitas vezes”, costuma dizer. Até porque as saudades de casa já são mais que muitas.“Sinto falta da minha mãe e irmã”, atira no seu curto mas perceptível vocabulário português.
Quando o assunto é a partida, Samuel faz ainda questão de enumerar o nome das pessoas que levará consigo no coração: “Vou lembrar muito o senhor Alves, a Júlia, o Miguel, a Dona Teresa, o Doutor, vou lembrar”, diz com um vazio. E descreve o mundo de sonhos que encontrou em Portugal: “Gostei do Portugal dos Pequeninos, vi as crianças nos baloiços, fui a Fátima”.
Durante estes tempos, Samuel ganhou também mediatismo. Tudo quanto é órgão de comunicação social fez questão de acompanhar de perto a sua história. “Fiquei famoso”, diz, em pose, com um largo sorriso, pronto a tirar mais umas fotos. Estes quinze minutos de fama, bastante prolongados, deixaram--no fascinado, mais ainda porque tornaram possível a concretização de um sonho antigo: conhecer o seu ídolo, Eusébio. “Gostei muito de conhecê-lo. Sou do Benfica”, realça. Mas anda pouco atento às mais recentes contratações do seu clube do coração.“Não conheço mais nenhum jogador. Só o Eusébio.”
UMA VIDA MELHOR
Por todos estes momentos que lhe foram proporcionados, António mostra-se um homem preocupado relativamente ao futuro de Samuel, que se habituou a uma “vida de luxo” que jamais encontrará em Chimoio, onde vive numa casa com precárias condições. “Gostava que ele vivesse de outra forma. Sei que eles conseguiram juntar algum dinheiro nesta temporada por aqui e que já é suficiente para fazerem umas obras na casa onde vivem. Vamos lá ver. Não me importava nada se ele cá quisesse ficar, se as coisas se encaminhassem nesse sentido, mas entendo que ele deve ficar com a mãe e com o pai.”
Quando esta reportagem sair, Samuel já estará na sua terra natal com o Pai – partiu sexta-feira, 8 de Abril. Lá, será acompanhado por equipas médicas de Moçambique, pelo menos até à idade adulta. Gentil Martins também vai estar atento aos progressos do seu menino, embora à distância. Todos os momentos vividos em Portugal por esta criança viajaram com ela. Na memória e no coração. Para além dos caixotes de roupa e brinquedos, dos recortes de jornais e revistas que fez questão de guardar para mostrar a toda a família, bem como uns quilos a mais, o rapaz de Chimoio levou também na bagagem uma nova vida, agora que, segundo o próprio, já é um homem.Janete Frazão