Entrevista com José Maria Neves
PUBLICO - 10.5.2005
Por Ana Dias Cordeiro
Além de uma parceria privilegiada com a União Europeia, o primeiro-ministro cabo-verdiano não exclui a hipótese de uma futura adesão à NATO, pois "a posição geoestratégica" do seu país "é fundamental para o futuro da Europa, dos Estados Unidos, de África e das Américas".
Desde que tomou posse em Janeiro de 2001, o primeiro-ministro de Cabo Verde, José Maria Neves, terá feito pelo menos cinco visitas oficiais a Portugal, e outras tantas privadas, em passagens por Lisboa. Essa frequência "reflecte a importância que atribuímos ao nosso
relacionamento com Portugal", explicou numa entrevista ao PÚBLICO, ontem, no fim de mais uma visita de trabalho. Em Lisboa, José Maria Neves teve encontros com o primeiro-ministro José Sócrates e outros membros do Governo português, participou no Fórum Investir em África, do Diário Económico, onde mais uma vez apelou aos empresários
a investir no seu país, e teve uma reunião com o ex-Presidente Mário Soares e o professor Adriano Moreira, promotores em Portugal da adesão de Cabo Verde à União Europeia.
PÚBLICO—Um dos assuntos dominantes nesta sua visita foi a análise de um estatuto especial de Cabo Verde na União Europeia [UE]. Qual o tipo de adesão que preconiza?
JOSÉ MARIA NEVES — O que nós pretendemos é ir o mais longe possível no relacionamento com a Europa. Não falamos neste momento de adesão, por ser uma questão muito complexa e difícil, sendo Cabo Verde um país africano. Mas pensamos que poderíamos ter um estatuto de associado, ou então um estatuto especial entre o estatuto de associado e o de
adesão. É nesse quadro que estamos a trabalhar desde 2001.
P - O que ganha Cabo Verde com essa parceria especial?
JMN - Cabo Verde é um pequeno Estado insular, que precisa de âncoras para o seu desenvolvimento económico e social A UE poderá ser uma dessas importantes âncoras de desenvolvimento de Cabo Verde.
P - Através de uma maior ajuda?
JMN - Através da construção dessa parceria e na partilha de interesses comuns. Um país como Cabo Verde, para poder competir e fazer face a toda a dinâmica rápida de transformações neste mundo globalizado, terá de ter âncoras. Pensamos que a UE, os EUA, a África do Sul, Angola, o Brasil, a China, poderão ser parceiros importantes de Cabo Verde. E queremos ser uma ponte entre a África, a Europa e as Américas, útil no contexto do Atlântico. Se explorarmos toda a nossa vocação atlântica,
podemos contribuir fortemente para que o Atlântico seja um corredor de paz. Será a nossa contrapartida neste processo de parcerias.
P - Cabo Verde está melhor posicionado do que outros países africanos para ser ponte entre África e a Europa?
JMN - De todos os países africanos, Cabo Verde é aquele que está mais próximo de ser essa ponte, também porque as instituições políticas e administrativas são muito próximas das instituições europeias. E temos a estabilidade macro-económica. Neste momento temos uma paridade fixa com o euro e os critérios de convergência de Maastricht são critérios de referência para a gestão económica do país.
P - O que ganha a UE com essa parceria privilegiada com Cabo Verde?
JMN - Há todo o interesse no alargamento do espaço de estabilidade e de segurança à parte Sul do Atlântico Norte.
P - Tem a ver com a posição geoestratégica do arquipélago?
JMN - Tem a ver com a transformação dessa posição geoestratégica em fonte de transformação do Atlântico num corredor de paz e de estabilidade. Cabo Verde poderá ser muito útil nesse processo, pois a sua posição geoestratégica é fundamental para o futuro da Europa, dos
EUA, de África e das Américas.
P - Como se articulará a influência americana com a maior influência que passaria a ter a Europa?
JMN - Essa questão de segurança no corredor do Atlântico é comum aos EUA e à Europa. Há um espaço comum que é a NATO. Neste momento, estamos a trabalhar numa maior aproximação à NATO. Foi já decidido que no próximo ano decorrerão, em Cabo Verde, os primeiros exercícios da NATO em África. Ao falarmos de parceria especial com a UE, haverá o lado económico, mas haverá também esse lado estratégico fundamental. A posição de Cabo Verde é fundamental nesta região, que tem recursos petrolíferos importantes que devem considerados.
P - Essa parceria poderia passar pela criação de uma base naval?
JMN - Poderá não passar necessariamente pela criação de bases militares em Cabo Verde. Aqui o mais importante é construir alianças. É importante para Cabo Verde mas também é importante para os grandes países.
P - Cabo Verde poderia tornar-se membro da NATO?
JMN - [Este processo] poderá levar a isso. Mas neste momento, queremos começar um caminho com a aproximação à NATO. Estamos a trabalhar essas questões [adesão à NATO e parceria com a UE] em conjunto.
P - Esse estatuto especial na UE contemplaria a adopção da moeda única europeia?
JMN - A economia cabo-verdiana, neste momento, é uma economia "euroizada" porque temos a paridade fixa [do escudo cabo-verdiano] com o euro. Não haveria muitos problemas na introdução do euro. Não excluímos essa possibilidade. É uma questão que vamos estudar e que
procuraremos consensualizar no país.
P - Mas a questão de um tipo de adesão à UE não é totalmente consensual no pais.
JMN - É claro que nessa questão deve haver um debate aberto com forte participação dos cabo-verdianos da diáspora e dos que residem no país. E se for necessário um referendo, haverá toda a abertura para que ele se realize.
P - Na lista dos projectos de investimento aprovados para Cabo Verde vêem-se quase exclusivamente actividades ligadas ao turismo. Pode Cabo Verde viver quase exclusivamente do turismo?
JMN - O turismo é um dos motores de crescimento. Há o turismo e há a indústria ligeira voltada para a exportação. São dois sectores que poderão ser motores de crescimento. Mas há outros sectores importantes, como os transportes aéreos e marítimos. Queremos transformar Cabo Verde num centro principal de passageiros e cargas na
região do Atlântico, como uma grande porta de entrada para África. E queremos que Cabo Verde se transforme numa importante praça financeira. Estamos a trabalhar neste sentido e também no domínio das novas tecnologias de telecomunicações e informações.
P - Mais de 80 por cento do Orçamento do Estado é financiado por recursos externos. Continuará Cabo Verde a viver tão dependente do exterior?
JMN - Cabo Verde é muito dependente da ajuda externa. Mas estamos num processo de transição, de passagem de País Menos Avançado a País de Desenvolvimento Médio, que será concluído em 2008. Com essa mudança, haverá uma redução substancial da ajuda. Passaremos de um modelo de desenvolvimento apoiado na ajuda para um modelo ancorado na competitividade da economia. É esse o principal desafio.
"O tráfico e a criminalidade são as maiores ameaças à segurança nacional"
Ao estar entre os três países com maiores níveis de desenvolvimento humano da África Subsariana, Cabo Verde é visto como um modelo e um potencial destino de investimento. Ao mesmo tempo, há sinais de que a criminalidade organizada disparou, o que para José Maria Neves já está a ser "estancado" pelo Governo. Contabilizaram-se 16 homicídios, desde Janeiro, numa frequência nunca antes vista.
P - O que explica este fenómeno no país?
JMN - O aumento dos homicídios tem a ver fundamentalmente com o narcotráfico e toda a criminalidade conexa. Narcotráfico que é transnacional. Muitas vezes, os grupos são organizados em vários países e o homicídio é mais um ajuste de contas entre grupos sedeados na Europa ou na América Latina. De todo o modo, o tráfico de estupefacientes e a criminalidade são as maiores ameaças à segurança nacional. Mas temos de ter em conta que o Governo começou a agir em relação a esses grupos organizados. Aprovámos a lei contra o branqueamento de capitais, reforçámos a polícia judiciária, estamos a
instalar os serviços de informação da República e a tomar medidas de prevenção. Estamos a esclarecer os casos e a dar duros golpes nessa criminalidade. É uma preocupação importante do relacionamento com a Europa. Portugal e Espanha, por exemplo, são países de destino desse
tráfico.
P - Por que está Cabo Verde tão desprotegido?
JMN - Há uma reduzida fiscalização das águas, que necessita de muitos meios, pois temos uma grande área costeira. Esta será uma área importante de cooperação com Portugal. Vamos ter um encontro ao mais alto nível, este mês, para estabelecermos a parceria. Mas devo dizer
que não há um ambiente generalizado de insegurança. Há esses homicídios e há uma acção muito forte para a punição dos seus responsáveis. Estamos em crer que já estamos a estancar esse processo com as últimas prisões. Cabo Verde continua a ser um país seguro apesar de esses dados prejudicarem o ambiente de segurança existente no país.