A Guiné-Bissau é um dos países mais pobres do mundo. Sentem-no na pele o milhão e meio de habitantes e confirmam-no as estatísticas. Segundo o Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, só cinco países vivem pior que a ex-colónia portuguesa. E se parte das culpas pode ser atribuída à escassez de riquezas naturais (apesar da hipótese do petróleo), no essencial a miséria deve-se à instabilidade política. É preciso não esquecer que, no espaço de uma década, dois presidentes foram afastados por obra de militares revoltosos, e que, no espaço ainda mais curto de cinco anos, dois chefes militares foram abatidos. Por isso é tão grave o desafio do ex-presidente Kumba Ialá aos líderes de Bissau.
Tudo o que ponha em causa a frágil estabilidade e carregue a ameaça de regresso à guerra é irresponsável. Eleito pelo povo e afastado pelos militares, Ialá até pode ter certa razão em reivindicar a presidência que um dia foi sua. Mas é um acto irreflectido quando falta menos de um mês para novas presidenciais onde teria razoáveis hipóteses de ganhar, apesar da concorrência de Malam Bacai Sanhá, candidato oficial do histórico PAIGC, e de Nino Vieira, outro antigo presidente. Ao deixar transparecer que o que conta acima de tudo são as suas ambições, mais mesmo do que a paz, Ialá terá posto em causa essas hipóteses de reconquistar nas urnas a chefia do Estado. E deu razão aos que o acusam de ser uma figura errática, sem ideais e apenas preocupado com o poder pessoal e a promoção da sua etnia balanta. No fundo, as razões do seu derrube em 2003.
Tudo tem servido para explicar a instabilidade guineense desde que em 1998 militares revoltados procuraram derrubar Nino. As teses mais fortes falam de rivalidades tribais. Dos balantas (um terço da população) a procurarem assegurar o controlo do Estado, da resistência dos mandingas (como Ansumane Mané, chefe militar morto em Novembro de 2000) ou dos papéis (como Nino, o presidente deposto por Mané em 1999). Rivalidades onde contarão também as fricções religiosas, num país quase repartido ao meio entre animistas e muçulmanos e uma pequena minoria de católicos. Outras teses falam da ingerência do Senegal e da Guiné-Conacri ou de ódios pessoais entre personalidades, como as que em tempos opuseram Nino a Ialá, Nino a Mané, Ialá a Mané ou Nino ao actual chefe do Estado-Maior guineense, Tagmé Na Waie, um homem que nos anos 80 foi preso e torturado e terá jurado vingança. E acrescente-se ainda, entre essas teses, a luta permanente pelos privilégios que pode oferecer um aparelho de Estado, mesmo que pobre - continua por explicar a morte do general Veríssimo Seabra, em Outubro do ano passado, mas tudo começou numa reivindicação salarial de militares regressados de uma missão de paz na Libéria. Num país onde a maioria vive com menos de um euro por dia, todas as prebendas são motivo de disputa.
Longe vão os tempos da Guiné-Bissau prestigiada internacionalmente. Longe vão os tempos da guerrilha do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde onde intelectuais como Amílcar Cabral e combatentes como Nino surgiam como exemplos da luta anticolonial, respeitados até por inimigos como o general Spínola. Longe vão os tempos em que, ainda com a Revolução dos Cravos por acontecer em Portugal, o PAIGC proclamava unilateralmente a independência, pouco depois reconhecida pela ONU.
Passadas três décadas, o cenário de esperança esfumou-se. Desde 1980, o PAIGC deixou de governar também Cabo Verde, que seguiu um rumo próprio, invejável, de país sem recursos, mas pacífico, democrático e aplaudido pelo mundo. A Guiné, por seu lado, vive presa na tragédia. Uma tragédia só explicável pela soma de todas as teses a das rivalidades tribais, a da ingerência, a dos ódios pessoais, a da disputa pelos privilégios do Estado. Mas pode ser que depois das presidenciais de 19 de Junho algo mude. Com ou sem Ialá.
Leonídio Paulo Ferreira
DIÁRIO DE NOTÍCIAS – 22.05.2005