A Asa da Letra
Por Mia Couto
Um jornalista que esta semana me entrevistou referia os nossos passados recentes e interrogava-se, curioso, sobre as nossas progressivas viragens e contra-viagens. Passámos da dominação colonial para a independência, da revolução para a guerra, do comunismo para o capitalismo, do marxismo para uma ideologia sem nome nem contorno.
O jornalista estranhava essas transições súbitas, essa espécie de saltitar de identidades, esses solavancos e cambalhotas existenciais. Que traumas terríveis essas torções e distorções teriam causado na nossa personalidade. Eu respondi: nenhumas. O fulano abriu os olhos à espera de uma explicação que eu não havia ainda desenhado para mim próprio.
Talvez seja assim: não fomos, alguém foi por nós. O nosso problema não é que tenhamos sido completamente alguma coisa: colonizados, revolucionários, nacionalistas, comunistas, capitalistas. Não fomos nunca totalmente nada disso. Fomos sempre parcialmente uma coisa e outra, atravessámos o tempo pisando nenúfares, molhando-nos às vezes mas nunca acima do tornozelo. Com as devidas e respeitosas excepções que custaram sangue e vidas. Mas, no resto, sub-fomos, vice-fomos. Como dizia um camponês a quem perguntei se chovia e ele respondeu: está um bocadinho quase a chover.
Olhemos para trás, passo por passo. Fomos colonizados, sim. Mas “mal” colonizados (mesmo sabendo que não existe uma coisa a que se possa chamar “bem” colonizado). O que quero dizer é que, no caso moçambicano, a colonização foi tardia, localizada e foi realizada por um país que não era capaz de colonizar por sistema, pois ele mesmo era um país da periferia. Em muito do território moçambicano a presença colonial foi uma presença diferida, por delegação de outros (como nos prazos e nas companhias).
Fomos revolucionários, sim. Mas a revolução foi assumida como um discurso praticado por campanhas e assumido até ao tutano apenas uns poucos, os chamados ideólogos a quem hoje se deitam as culpas dos chamados “excessos”. A maioria dos que estiveram na revolução viajou na boleia de uma viagem que dizem ter sido dos “outros”. Hoje, olhando no retrovisor da memória, todos os ex-revolucionários referem aos agentes da Revolução como sendo “eles”. Ou, mais distantes: “aqueles” que clamaram por “vivas” e “abaixos”.
Dissemos que morreríamos pela independência. E muitos morreram. Esses foram realmente tudo por uma causa concreta. Todos sabíamos, porém, que a independência política teria que ser somada à económica. E esse percurso é feito inevitavelmente com ziguezagues. Há quem diga que estamos dando mais passos atrás do que para a frente. A pergunta será: alguém sabe, hoje, com clareza onde fica o “atrás” e o “adiante” ?
Não fomos totalmente comunistas, faltou-nos (felizmente) a habilidade de criar um sistema quando andávamos à nora para construir simplesmente um regime. Muitos dos que se diziam comunistas nunca deixaram de ser, antes de mais, profundamente religiosos. Os que combatiam a religião e a apresentavam como “ópio do povo” sentam-se hoje na primeira fila da igreja e estendem a língua para receber a hóstia sagrada. Uns que combatiam a burguesia se apressaram a ocupar os postos vagos, a apertar o nó da compatível gravata italiana.
Levantámos a bandeira do escangalhamento do aparelho de Estado colonial. Mas apenas desarrumamos o estado do aparelho. Uns que pretendiam deslusitanizar a lei nossa estão hoje terminando o mestrado de Direito em Lisboa. É isto um erro, um acerto do passo, uma visão mais pragmática? Quem pode saber ao certo?
Fizemos uma guerra civil mas ela não foi exactamente nem uma “guerra”, nem foi “civil”. O mais real e irreversível desse episódio são os mortos que daí resultaram. Os autores de horripilantes massacres nunca tiveram rosto nem nome. O apelido de “bandidos armados” é uma poeira que desvanece e isso parece ser uma necessidade para que o país se reconcilie. Alguém foi alguma coisa em 16 anos de um dos mais cruéis momentos da nossa História?
Tudo este balanço está isento de julgamento. Não fizemos, não fomos, não somos. E se calhar teve e tem que ser assim mesmo. Estamos experimentando ser, estamos apalpando o fazer. Não poderemos, contudo, ficar sempre pela metade. Um destes dias o mundo vai pedir que sejamos por completo qualquer coisa. Não bastará então que sejamos “contra”. Contra a passividade, contra a pobreza, contra o que ainda vier a ser escolhido como alvo maléfico. Teremos então que ser a favor de um ideal de futuro bem mais conciso, uma aposta que tenha um nome mesmo que esse nome ainda não exista. Um dia destes teremos que deixar de rabiscar na areia. Teremos que escrever na pedra.
SAVANA - 29.04.2005