RESENHA
Adelto Gonçalves
Nos países onde os partidos de esquerda chegaram ao poder, o fervor revolucionário tem sido sempre trocado pelo populismo e o capitalismo segue com sua força destrutiva e indestrutível. Em Moçambique, uma das mais pobres e martirizadas nações do mundo, depois 30 anos de guerra civil, não foi diferente. É o que se pode ver em O último voo do flamingo, romance do moçambicano Mia Couto, que aproveita mais uma parábola africana para contar as mazelas de um momento histórico de um país em que antigos ativistas de esquerda, agora agarrados ao poder como mariscos nas velhas fortalezas coloniais, empreendem o conhecido jogo pautado pelo favorecimento pessoal e pela indiferença do povo, a vítima de sempre.
A parábola, que inspirou o romance, o próprio romancista a descreveu no discurso em que agradeceu o Prêmio Mário António da Fundação Calouste, em Lisboa, a 12 de junho de 2001, lembrando que, no Sul de Moçambique, os flamingos, quando retornam de suas demoradas viagens, são vistos como eternos anunciadores de esperança. Diz o autor que, um dia, foi assaltado por uma terrível angústia: e se os flamingos não voltassem mais? Com certeza, também não mais voltaria a esperança.
Portanto, O último voo do flamingo fala do imenso rapto da esperança praticado pela ganância dos poderosos. E esses poderosos não são apenas aqueles muito conhecidos e visíveis, que costumam se reunir numa estação de esqui na Suíça, mas aqueles que se movem quase invisíveis nas próprias nações e enriquecem à custa de tudo e de todos, roubando dos cofres públicos o dinheiro que serviria para alimentar crianças famélicas.
Embora moçambicano de primeira geração, de pais portugueses, Antônio Emílio Leite Couto, Mia desde criança, carrega a alma negra e oriental de quem cresceu em meio a esse mundo miscegenado por negros, árabes, europeus e indianos. Foi jornalista a partir de 1974, quando tinha apenas 19 anos de idade e assumiu a direção da Agência de Informação de Moçambique. Em seguida, foi diretor do jornal Notícias de Maputo e da revista Tempo porque, num país onde tudo ainda estava por fazer, as pessoas assumiam cedo as responsabilidades na vida. Encontrou ainda tempo para estudar medicina e licenciar-se em biologia.
Num lugar em que persiste uma forte tradição de transmissão dos saberes essencialmente pela voz, Mia Couto logo encantou-se por esse mundo oral, que tem procurado passar para seus livros que já não são poucos. Descobriu que esse caminho era possível depois de ver como Guimarães Rosa retransmitia as vozes do sertão de Minas Gerais. Como Guimarães Rosa, tratou de inventar palavras e fazer trocadilhos, às vezes de mau gosto, como o título Mar me quer que deu a um livro de 1997 (Lisboa, Caminho), mas que, em razão da magia que perpassa a sua escrita, acabam ganhando outra dimensão.
Desta vez, em O último voo do flamingo, Mia Couto conta a história de um italiano, Massimo Risi, que, conhecendo mal o português, é designado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para investigar fatos estranhos que estão ocorrendo com soldados das forças de paz: seus corpos desaparecem sem deixar vestígios, mas suas genitálias surgem sempre intactas, uma delas encontrada em plena via pública de Tizangara, imaginária cidadezinha do interior de Moçambique.
Os depoimentos de moradores e autoridades são sempre contraditórios, o que impede o representante da ONU de fazer um relatório minucioso, bem dentro do espírito cartesiano dos donos do mundo, que possa entregar a seu chefe em Nova York. Sem maiores conhecimentos do país, o italiano acaba sempre enredado nas misteriosas histórias contadas pelos moradores e envolvido nas tortuosas relações políticas locais.
Quem escreve o livro, porém, é um modesto funcionário de Tizingara, nomeado tradutor oficial pelo administrador Estevão Jonas, o protótipo do ex-revolucionário agora muito mais preocupado em manter o poder e disposto a fazer qualquer conchavo para não retroceder na carreira.
Guiado pelo tradutor, o estrangeiro começa as investigações sobre os soldados de capacetes azuis que explodiam sem explicação. E as soluções que aparecem são as mais engenhosas, como a convocação da prostituta Ana Deusqueira para analisar aquilo que, em tese, seria sua especialidade, na tentativa de descobrir a quem pertenceria um órgão sexual exposto na rua.
Não é só. O italiano ainda seria enredado por Temporina, que, como diz o seu nome, seria capaz de viver ludibriar o tempo, mulher de corpo exuberante e com feições de anciã. O sábio da história, porém, é o pescador Sulplício, pai do tradutor de Tizangara, que, a rigor, já não é deste mundo. Como se vê, é o realismo fantástico que norteia este livro.
O que Mia Couto faz é uma crítica corrosiva àqueles que, em outros tempos, esgoelavam-se num discurso em que condenavam todas as sujeiras dos poderosos, mas que no poder agora se lambuzam com a podridão e semeam a guerra e a miséria numa terra antes tão fértil. “Estes poderosos de Tizangara têm medo de suas próprias pequenidades. Estão cercados, em seu desejo de serem ricos. Porque o povo não lhes perdoa o facto de eles não repartirem riquezas. A moral aqui é assim: enriquece, sim, mas nunca sozinho. São perseguidos pelos pobres de dentro, desrespeitados pelos ricos de fora. Tenho pena deles, coitados, sempre moleques”, diz a prostituta Ana Deusqueira, conhecedora das fraquezas dos homens.
Como a esquerda no poder chafurdou-se também na lama, já não há nenhuma alternativa para a população pobre. É essa a mensagem niilista que passa o livro de Mia Couto em que os mortos continuam a governar os vivos e chegam ao máximo de seqüestrar o verdadeiro Moçambique, como já acontecera com outras terras de África.
“Entregara-se o destino dessas nações a ambiciosos que governaram como hienas, pensando apenas em engordar rápido. Contra esses desgovernantes se tinha experimentado o inatentável: ossinhos mágicos, sangue de cabrito, fumos de presságio (...). Tudo fora em vão: não havia melhora para aqueles países. Faltava gente que amasse a terra. Faltavam homens que pusessem respeito nos outros homens”, escreve o tradutor, desolado, observando que, talvez por isso, os deuses africanos, vendo que não havia solução, decidiram transportar aqueles países para esses céus que ficam no fundo da terra.
Ao se chegar ao fim deste livro, o leitor brasileiro há de perguntar: será que esses deuses, talvez confundidos por uma mesma língua, não seqüestraram também o Brasil, levando-o “para um lugar de névoas subterrâneas, onde as nuvens nascem”? Realismo mágico à parte, como o leitor brasileiro deve ter percebido pela falta do acento circunflexo no vôo do título do livro, a Companhia das Letras sabiamente decidiu preservar o português moçambicano de Mia Couto, exemplo que deveria ser seguido por todas as editoras não só brasileiras como portuguesas e africanas, quando editassem autores da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), pois, afinal, se todos nos entendemos em português, não será por um acento ou um pê a mais ou a menos que vamos deixar de nos ler mutuamente. E descobrir como somos iguais.
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O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, de Mia Couto. São Paulo, Companhia das Letras, 225 págs., 2005, R$ 36.