Por ELISÍO MACAMO
NOS tempos que já lá vão, na Alemanha, dizia-se que o ar da cidade libertava (Stadtluft macht frei). A cidade, ou melhor os burgos, distinguiam-se do meio rural pelos espaços que criavam para a emancipação individual. Enquanto que no meio rural a criatividade e o empreendimento individuais eram manietados por estruturas políticas e sociais rígidas, nas cidades existia pelo menos a possibilidade teórica de cada qual, na base do seu esforço, tirar o maior proveito das suas potencialidades. Era, portanto, nesse sentido que se identificava o ar da cidade com a liberdade e com emancipação.
A trajectória do nosso País cruza-se, em alguns momentos, com aspectos da evolução alemã. Entre nós, também, as cidades constituíram-se, cedo, em espaços de emancipação individual. As pessoas que afluíram à cidade de Lourenço Marques vindas da sua periferia, por exemplo, não vinham apenas à procura de emprego assalariado. Subtraíam-se, também, ao poder arbitrário de estruturas normativas e políticas incompatíveis com a vontade individual de tirar o maior proveito das oportunidades que a modernidade proporcionava.
Abro, aqui, um parêntesis, para dizer que fechei os olhos com horror quando li recentemente neste jornal que o Ministério da Administração Estatal está empenhado em instalar rapidamente os régulos como resultado palpável dos primeiros 100 dias de governação... de luta contra a pobreza absoluta! Em escritos mais académicos, defendo a tese de que o nacionalismo no nosso País se explica melhor não tanto com recurso à exploração ou opressão, como sempre se insistiu na nossa historiografia, quanto ao que o colonialismo representou ao nível individual. Com efeito, de forma muito ambígua, os moçambicanos ergueram-se contra o colonialismo porque este lhes recusava a modernidade, uma modernidade cuja promessa, paradoxalmente, estava na base da legitimidade do próprio sistema colonial.
Quando, portanto, conquistámos a independência e, consequentemente, saímos da periferia das cidades, do caniço, para o centro, cimento, estávamos a reclamar de forma simbolicamente bem conseguida o nosso direito à modernidade;,à vida no prédio, ao cinema, ao veículo automóvel, à água canalizada, à luz, à lei e à ordem. Mesmo o vandalismo involuntário que acompanhou essas nossas conquistas e que se manifestou no uso e aproveitamento do soalho para fazer fogueiras, de pilões no décimo andar, de papel de jornal em sanitas, etc. era uma manifestação, inicialmente, da nossa ousadia, dessa temeridade de espírito que nos havia conduzido à reclamação dos nossos direitos.
Já passaram três dezenas de anos sobre esse momento empolgante e com eles também o período de graça pela nossa ignorância das regras básicas de vida urbana. É certo que vivemos ainda a epopeia desse momento emancipatório, sobejamente patente na nossa incapacidade de nos adaptarmos à vida urbana. As nossas cidades, apresso-me a precisar, não foram tomadas de assalto pela cultura africana como alguns podem se sentir tentados a pensar. As nossas cidades foram tomadas de assalto por gente com uma cultura rural que deu um salto enorme da tradição para a modernidade.
Os buracos nas estradas, o lixo arrogante, os semáforos loucos da cidade de Maputo - parecem luzes da discoteca de tão rápido que mudam — os agentes da ilegalidade e da desordem, o barulho das farras, a insegurança da circulação rodoviária, enfim, a nossa interpretação da noção de urbanidade, são um comentário eloquente dos perigos que acompanham a trajectória dos que queimam etapas. Definiu a esfera pública como o espaço de controlo das acções dos outros.
Enquanto que no meio rural as coisas que fazemos afectam pouca gente, normalmente até nenhuma pessoa, no meio urbano o que fazemos potencialmente pode afectar muitas outras pessoas. A vida em meio urbano, portanto, exige uma sensibilidade maior na regulação do que cada um de nós faz. Em certa medida, a base de toda e qualquer autoridade num meio assim é justamente a capacidade de limitar as consequências negativas da acção individual sobre o colectivo.
O aspecto da cultura rural e urbana que quero salientar nesta reflexão é o que diz respeito às consequências da acção individual.
Socorro-me do pragmatismo de John Dewey, um filósofo americano, que definiu a esfera pública como o espaço de. controlo das acções dos outros. Enquanto que no meio rural as coisas que fazemos afectam pouca gente, normalmente até nenhuma pessoa, no meio urbano o que fazemos potencialmente pode afectar muitas outras pessoas. A vida em meio urbano, portanto, exige uma sensibilidade maior na regulação do que cada um de nós faz. Em certa medida, a base de toda e qualquer autoridade num meio assim é justamente a capacidade de limitar as consequências negativas da acção individual sobre o colectivo.
A adaptação à vida urbana, portanto, não consiste fundamentalmente na capacidade de usar o autoclismo, respeitar o soalho dos apartamentos e não pilar em prédios. Ela consiste, isso sim, no civismo. Civismo é, na sua essência, o respeito pelos outros. O respeito pelos outros é a atenção às consequências da minha acção individual que, em meio urbano, costumam ser devastadoras. O lixo que deito no chão pode provocar surtos de cólera; o desrespeito pelas regras de trânsito pode provocar acidentes.
Não é por acaso que o meio urbano se chama cidade, É o lugar onde pratico o civismo, mais ou menos isso. Se retivermos em mente que a cultura africana se funda também no respeito pelos outros, veremos que ela não é incompatível com a Vida em meio urbano. O problema é que a cidade veio em momento inoportuno, quando ainda não estávamos preparados para aplicar os princípios fundamentais da nossa cultura em grande escala.
NOTÍCIAS(Maputo) - 28.04.2005