MARCELINO DOS SANTOS REVELA QUE A FRELIMO JÁ TINHA DECIDIDO APOSTAR NUMA NOVA LIDERANÇA
Numa entrevista inusitada, Marcelino dos Santos abriu o repositório da memória colectiva da história deste país que é, afinal, a sua trajectória política. Porque a história deste homem é a História de Moçambique pela simples razão de que não se pode falar nem de uma nem de outra sem uma alusão mútua. Dir-se-ia que estamos em presença do Sr. História de Moçambique.
Marcelino dos Santos fala de si, dos seus companheiros, do passado, do presente, mas sobretudo do que espera que seja o futuro de um pais que "ajudou a nascer e a criar". Eis as partes significativas de uma entrevista de hora e meia, que pode ser integralmente acompanhada, na próxima terça-feira, na STV.
As razões para nunca ter sido Presidente
- Quando Samora morreu, o senhor era o número dois do país, mas foi Chissano que passou a Presidente. Foi por opção pessoal ou do partido?
- Eu compreendo essa pergunta. Muita gente já me questionou porque é que não fui presidente da Frelimo. Não tenham problemas, não há conflito nenhum entre eu e Chissano, entre eu e qualquer outro membro da Frelimo. Foi uma necessidade que nós sentimos de pôr o Presidente Chissano. Se vocês querem saber mais, aí terão que esperar um pouco mais. Mas acreditem, estávamos e permanecemos unidos. O povo moçambicano dá-me uma certa liberdade para eu não falar tudo sobre este assunto.
- Coloquei essa questão porque durante muito tempo o senhor foi o número dois da Frelimo, mas não avançou após a morte de Mondlane e voltou a não avançar após a morte de Machel...
- Eu falo para dizer ao povo moçambicano que não se preocupe com isso. Não há nada de grave nisso. Um dia, quando chegar o momento, vão saber porquê.
- Esse esclarecimento será feito por si ou após a sua morte?
- Sei lá, nunca por mim sozinho mesmo se for pela minha boca, terá sempre a voz do partido.
Negociar com "bandidos armados"
- Joaquim Chissano encetou negociações com a Renamo para o fim da guerra, sobretudo por via da igreja. Havia consenso, dentro da Frelimo, para se negociar com os "bandidos armados" como chamavam à Renamo?
- Consenso havia, talvez houvesse alguma relutância por ambas as partes, porque muitos de nós pensávamos o seguinte: a Renamo é uma construção da segurança rodesiana, É muito importante que nós sublinhemos este facto: a Renamo era e é um instrumento criado pela Rodésia do Sul e que depois passou para as mãos do Apartheid.
- Mas mesmo assim, foram sentar-se à mesma mesa com esta gente...
- Pois, mas mesmo entre nós perguntávamo-nos porque é que a gente não vai falar com o criador, o apartheid, em vez da Renamo, se o patrão é o apartheid. Naturalmente que ao nível do mundo era muito difícil, já que o apartheid era o Estado da África do Sul. Era difícil as Nações Unidas aceitarem que o apartheid é que era o dono da Renamo, sendo por isso que houve consenso em aceitar-se que sim, façamos negociações com a Renamo, mas sabendo muito bem que os patrões não são eles, o dono era o apartheid.
- O senhor disse em Malehice, na homenagem a Joaquim Chissano, que não teria tido a paciência de Chissano para negociar durante 27 meses...
- Isso é verdade... (risos), porque cada um é como é. Um partido tem a responsabilidade de escolher os seus quadros em função das exigências do tempo e não há dúvida nenhuma que o camarada Presidente Joaquim Chissano tem uma paciência enorme. Nós discutimos coisas fortes no Comité Central e houve momentos em que começamos a gritar, elevando a voz sempre respeitosamente, mas Chissano sempre falava calmamente. Então, não há dúvida nenhuma que para esse período, Chissano foi, realmente, a pessoa indicada.
- Se tivesse sido Marcelino dos Santos teria roído a corda...
- Se o partido me tivesse indigitado para ir lá negociar, creio que teria feito o papel de membro do partido, mas era preciso uma luta interna muito grande para eu conseguir ser disciplinado, confesso muito francamente.
- O senhor disse também que nunca iria apertar a mão a Afonso Dhlakama. Mantém a ideia?
- Naturalmente.
- Mas porquê?
- Um indivíduo que foi criado pelo apartheid, um instrumento do apartheid, que nem personalidade moçambicana tem, com que base eu vou aceitá-lo na nossa comunidade? Normalmente, nós pensamos o seguinte: eu fiz muitos erros, traí, etc, mas pelo menos eu devo ser capaz de chegar diante do povo moçambicano e pedir desculpas por ter feito isso, pedir para ser perdoado e ser reintegrado na família moçambicana.
Os erros da Frelimo e da Renamo
- A Frelimo também cometeu erros...
- Enquanto na Frelimo cinco por cento são maus, na Renamo cinco por cento são bons e 95 são criminosos. Como é que você pode fazer uma comparação dessas?
- Eu coloco esta pergunta porque há situações de erros que a Frelimo também, se fosse por uma questão de lógica, ia pedir desculpas ao povo.
- Não, não.
- Por exemplo a Operação Produção. A Frelimo não deve pedir desculpas ao povo?
- Não, antes pelo contrário, há muitas pessoas que estão a pedir Operação Produção. Você vai a muitas províncias e encontra o povo que foi organizado no tempo da Operação Produção.
- Mas nos moldes em que ela foi conduzida, raptando pessoas nas ruas e à noite em casa das pessoas?
- Fizemos muitos erros desses, mas não para negar o princípio.
- Mas colocava na lógica de pedir desculpas.
- Na Renamo é preciso negar, é preciso recusar o princípio e a prática, mas na Frelimo não.
- Chissano saiu e entrou Guebuza. Estava-se à espera, provavelmente, de uma liderança nova. A Frelimo não é capaz de avançar para uma liderança nova no sentido de gente toda nova, completamente descomprometida com o passado do partido?
- Você tem medo do seu passado? Que gente é você? (risos), Não é por ser gente nova que se é revolucionário! Há gente jovem reaccionária. Há ou não há? É capaz de dizer o contrário? Não se pode pôr do lado dos reaccionários, mas o problema é esse, companheiro. É errado pensar que o processo de desenvolvimento de um país passa por, num momento, rejeitar os que são antigos. Há que sempre fazer a ligação entre as gerações.
- E essa ligação está sendo feita?
- Está sendo feita, sim. Mesmo que a gente a esteja a fazer com muitos erros, o princípio é este, camarada, não pode ser gente nova... gente nova... chamar qualquer reaccionário, assim? Vejamos, por exemplo, o que aconteceu com o Conselho Na- cional da Juventude. Viram de perto a evolução do Conselho Nacional da Juventude, o trabalho que foi feito pela direcção anterior. Vocês viram o trabalho que foi necessário fazer para recompor a situação no CNJ?
Nova postura para o governo
- Quando Armando Guebuza tomou posse, o Sr. Marcelino dos Santos disse que tinha entrado o governo do povo, O que quis dizer com isso?
- Porque é um governo para fazer trabalho do povo, para respeitar os interesses das massas populares.
- Chissano não estava a fazer isso?
- Chissano estava, mas ele entrou num momento muito difícil em que nós tivemos que negociar com toda essa gente, incluindo o Banco Mundial. Ora, sabe muito bem que a aceitação das relações com o Banco Mundial foi o abrir as portas à invasão do capitalismo e do imperialismo no nosso país, quer dizer, abrimos a porta para aquilo que se chama capitalismo liberal para as economias de mercado.
- Acha que foi isso que desgastou Chissano?
- Não. Foi o momento difícil que nós tivemos que suportar e, naturalmente, há coisas que eu considero que realmente não foram das melhores. Nós temos agora essa questão que se está a pôr sobre as areias pesadas em que se diz que não há espaço para os empresários moçambicanos. Como é que é possível uma coisa dessas, nem para carregar areia? De modo que é isso que nós temos que ver. É preciso criar condições para que os moçambicanos possam participar em todos os projectos que tenham lugar neste país.
- Acha que Chissano foi muito condescendente com o poder financeiro?
- Eu acho que sim, mas eram daquelas coisas… você entra num sistema e não é fácil sair de lá e realmente, nós na Frelimo, tivemos essa capacidade de que podemos transformar a situação pondo Guebuza lá para ser um homem da recuperação.
- Havia condições para Chissano avançar para um terceiro mandato?
- Eu creio que não havia condições para Chissano continuar. Precisamente porque era exigida uma nova postura do Governo. Não estou a condenar Chissano... você sabe que Chissano granjeou um prestígio imenso no planeta, Marcelino nunca seria capaz de fazer isso, daquela maneira. Todo e qualquer moçambicano deve ter orgulho disso, isso nós temos que preservar.
- Foi uma decisão pessoal de Chissano ou também do próprio partido que ele não avançasse para um terceiro mandato?
- Bom, segundo aquilo que sei, foi por vontade própria dele, porque quando o camarada Presidente Chissano apresenta ao Comité Central a sua vontade, ou melhor quando a Comissão Política informa o camarada Presidente desta mesma situação, porque foi preciso a Comissão política pedir para ser ele próprio a apresentar a coisa nasceu até ele próprio consagrar que era tempo de deixar.
- Ou seja...
- Era também sentimento nosso que para se efectivar uma real mudança, para permitir que o país passasse para a recuperação de muitos degraus perdidos, era preciso que mudássemos a direcção.
- Objectivamente, o que espera de Armando Guebuza?
- Espero que nós assumamos finalmente o poder. Que a Frelimo retome a linha que consagrou nos seus estatutos, no seu número dois: a Frelimo congrega no seu seio todos os moçambicanos de todas as classes e camadas sociais que aprovam os estatutos e programas do partido Frelimo"
- Parte significativa da classe política actual está aburguesada ou para lá caminha e, em contrapartida, o povo vegeta. Não acha que isto distorce o discurso que apregoam, em público, de combate à pobreza?
- Não, não, agora há necessidade de nos fazermos compreender a toda classe social moçambicana que todos temos interesses em estarmos juntos porque todos somos oprimidos pela mesma força, que é trazida através dum Banco Mundial e dum fundo monetário que são instrumentos do grande capital mundial.
SEMANÁRIO “O PAÍS”(Maputo) – Junho de 2005
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