Adelto Gonçalves*
Escravos e libertos no Brasil colonial (The Black Man in Slavery and Freedom in Colonial Brazil), de A.J.R. Russel-Wood, foi um livro extremamente importante no estudo dos indivíduos livres e libertos de origem e ascendência africana quando saiu à luz, nos Estados Unidos, em 1982. Tanto que é largamente citado nas bibliografias dos trabalhos que se escreveram sobre o tema nos últimos 23 anos. Mas, desde então, acumulou-se uma rica e crescente bibliografia, não só empreendida por alguns historiadores norte-americanos como, principalmente, por pesquisadores brasileiros, baseada em pesquisas meticulosas de arquivos numa dimensão que não havia sido alcançada por Russel-Wood.
Que um livro tão importante para a historiografia brasileira seja publicado só agora no Brasil, é culpa que, obviamente, não cabe ao seu autor, mas apenas à miopia dos editores brasileiros especializados em História. Tivesse obtido tradução em português em seu devido tempo, na década de 80, por certo, teria sido muito mais útil aos pesquisadores que desenvolveram trabalhos de mestrado e doutorado em História, ainda que muitos se tenham valido da edição em inglês.
Nem por isso deixa de ser leitura importante e fecunda que ainda pode oferecer algumas idéias e pistas para novos trabalhos, tal a enormidade de fontes e conclusões que o pesquisador norte-americano apresenta. Figura afável, Russel-Wood, 76 anos, é sempre lembrado com carinho por aqueles que tiveram a sorte de cruzar com ele nos arquivos do Brasil e Portugal. E, embora ainda em atividade, já deixou sucessores de grande porte como o pesquisador Ernst Pijning, holandês de origem e hoje professor da Minot State University, em Dakota do Norte, EUA, especialista na questão do contrabando no Brasil do século XVIII, de quem o brazilianist foi orientador no doutoramento na Johns Hopkins University.
Pesquisador responsável e atento, Russel-Wood, em razão das descobertas mais recentes, decidiu que, se o seu livro teria de, finalmente, ganhar edição brasileira, não poderia mais sair do jeito que havia sido publicado em 1982. Por isso, escreveu um epílogo que é mais um novo capítulo, de 54 páginas, em que admite que teve de fazer uma revisão completa de seu entendimento do processo de manumissão e da contribuição dos libertos (nos documentos da época, quase sempre, chamados de forros) e dos não-brancos livres à economia, à sociedade e à cultura do Brasil colonial.
Em seu epílogo, Russel-Wood tratou de rever a nova historiografia concernente aos tópicos discutidos em seu livro, sem deixar de ressaltar como os novos achados acadêmicos o levaram a modificar suas abordagens anteriores. De fato, à época em que escreveu seu livro, ainda estavam presentes na historiografia alguns estereótipos sobre a família patricarcal, as condições da escravatura e a posição dos indivíduos de ascendência africana livres na sociedade escravocrata do Brasil colonial.
Como observa Russel-Wood, há dois temas que percorrem o seu livro. Um é até que ponto os escravos e pessoas livres negociavam e tomavam decisões com base em suas prioridades e não no contexto de um dono ou como reflexo de valores europeus. O outro tema diz respeito à fluidez das relações no Brasil colonial. A essa época, o fato de algo ser legal ou ilegal podia depender menos do ato que da posição do indivíduo ou do contexto da suposta transgressão.
Para Russel-Wood, não estava menos sujeito a interpretações o conceito de “corrupção”. Quais eram as circunstâncias que determinavam se uma prática comercial era lícita ou ilícita? Pensando bem, ainda hoje é assim no Brasil: há uma classe social que sempre paira acima da lei. Ou, como se dizia à época da conjuração mineira de 1789: a lei é sempre para os que estão por baixo.
Russel-Wood lembra que os indivíduos de ascendência africana que nasceram livres ou conquistaram a liberdade viveram uma época e num lugar em que sua posição era ambígua e incerta. De fato, no Brasil colonial, a distinção legal entre um escravo e uma pessoa livre era nebulosa ou ignorada em alguns decretos reais e éditos de governadores, enquanto em outros casos o fato de um infrator ser escravo ou livre era decisivo para determinar sua punição.
Diz o pesquisador que exatamente por serem indivíduos livres aos olhos da lei mas ainda inalienavelmente associados ao fato de que seus antepassados haviam sido escravos, para os nascidos livres ou alforriados a cor da pele assumia importância adicional. A pele mais escura ou mais clara poderia alterar a escala pela qual teriam negado ou garantido o acesso a certas oportunidades. Ou seja, a liberdade dessas pessoas era vulnerável e podia ser revogada ou alterada.
Em conclusão, Russel-Wood diz que há indícios suficientes de que as pessoas livres e libertas, homens e mulheres, nascidas na África e no Brasil, tiveram a oportunidade de toma decisões, negociar e, por seus atos, assumir certo grau de controle sobre a vida. Ou seja, no Brasil, “houve um mundo que o africano criou”, diz Russel-Wood, parodiando famosa frase do antropólogo Gilberto Freyre. Muitos, mesmo enfrentando um ambiente hostil, montaram negócios e constituíram famílias. Mas pouquíssimos ficaram muito ricos e tornaram-se famosos além de seu local de residência. Para a maioria, a condição legal de ser livre não os poupou de uma vida cotidiana precária, de pobreza e até de miséria.
Ainda hoje no Brasil, o panorama não é muito diferente. A igualdade das pessoas perante a lei ainda é fluida, ou seja, varia de acordo com a condição social, o que vale para negros, pardos e brancos. Recentemente, no dia 14 de abril de 2005, num jogo de futebol entre São Paulo e Quilmes, da Argentina, no estádio do Morumbi, em São Paulo, pela Taça Libertadores da América, o jogador argentino Desábato xingou o atacante brasileiro Grafite com palavras racistas, o que motivou a sua prisão por um delegado de polícia a pedido do jogador são-paulino. Tudo feito à frente das câmeras da TV com muito estardalhaço.
Aproveitando esse fato numa aula de Antropologia, perguntei numa prova aos alunos se eles acreditavam que a reação de Grafite faria eclodir um novo paradigma na sociedade brasileira. Ou seja: se a partir daquele fato as diferentes situações de discriminação e constrangimento a que estão expostas as pessoas negras no Brasil receberiam o mesmo tratamento dado àquele caso?
A resposta unânime foi de que aquilo só acontecera porque, primeiro, o jogador Grafite era rico e famoso e, depois, porque se dera sob os olhos da mídia. E que, em circunstâncias normais, um negro pobre ou remediado, mesmo se insultado em seu cotidiano, não levaria o caso adiante não só porque teria de contratar os serviços (sempre custosos) de algum advogado como também não acreditaria na boa fé das autoridades policiais e muito menos da Justiça. Em outras palavras: não mudamos muito desde a época do Brasil colônia.
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ESCRAVOS E LIBERTOS NO BRASIL COLONIAL, de A.J.R. Russell-Wood, tradução de Maria Beatriz Medina. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 473 págs., 2005. E-mail: [email protected]
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*Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]