A opinião de: Luís Abel Cezerilo*
BREVÍSSIMAS PALAVRAS
“Com tais fragmentos foi que escorei minhas ruínas”. T. S. Eliot
“Herdar é ler o que nos é legado” Bennington
Como já diria Roland Barthes, em O rumor da língua “a linguagem literária excede sempre qualquer esquema descritivo, escapa sempre às malhas grosseiras de metalinguagem técnica”. De acordo Leila Perrone-Moisés, suas análises, as de Barthes, o conduziam a ver menos o que se encaixava nos modelos do que aquilo que os desmantelava.” (2004).
Ainda para Perrone-Moisés, o texto literário tomado por esse autor não foi dominado por necessidade de decifrá-lo, visto que foi o indomável que o seduziu e que provocou, em vez de uma simples grade de leitura do texto-objeto, a produção de um novo texto tão complexo e fascinante quanto aquele que lhe servira de pretexto. A tentativa de saber o que o texto literário significa revelou-se para Barthes como uma impossibilidade e um logro.
Contudo, o texto escrito ultrapassa o mero acto de reter o dito. A tensão que se estabelece é, portanto, entre o “dizer original” e a inevitável abertura que sempre leva em conta a alteridade – o outro– a quem esse dizer, afinal, se destina. Este não corresponde ao que chamaríamos de um “interlocutor originário”, como alguém que, tem diante de si a tarefa de compreender , imposta pelo próprio texto, pois, como diz Gadamer, “um texto não é um objecto dado mas uma fase na realização de um processo de entendimento”.
Assim é a poesia de Eduardo White. Por meio de sua escrita, defrontamo-nos com essa impossibilidade de que se queixava Barthes. A propósito, ele é enfático em relação a isso. Neste livro, White já adverte a respeito da dificuldade de compreender o poeta. Enfaticamente ele especula: Mas porque é que não me consigo fazer compreender? Não é atrevimento esta coisa do poeta pretender fazer-se compreender? É claro que é. (pag. 21).
Com essa advertência, temos a total segurança de que nunca vai haver tempo para a última palavra. White, assim como cada leitor(a), é a letra da palavra que nunca se completa. Ainda que a tarefa do(a) leitor(a) não deva ser a de interpretação da poesia whiteana, continua valendo a tarefa de assimilar o texto poético sem domesticá-lo, incorporá-lo sem neutralizá-lo.
White oxigena sua capacidade de escrita e investe em um temário que o persegue implacavelmente. Tomando as palavras de T. S. Eliot, – escritor exponencial da poesia inglesa –, “Dirás que estou a repetir/ Alguma coisa que antes já dissera. Tornarei a dizê-lo” –, testemunhamos no poeta uma repetição que não se confunde com o velho lustrado de novo. Ao repetir, White difere, conforme a lógica da repetição e diferença do filósofo Jacques Derrida. Portanto, ao repetir, inova. Num jogo de perguntas e respostas, Até amanhã coração entabula solilóquios e diálogos com o povo e com ele mesmo sobre a situação do país: Anda por aí o boato de que a população não foi votar nas eleições por que o governo deu tolerância de ponto. Mas têm o quê contra a população essa gente? Povo quando tem tolerância de ponto vai cumprir os seus deveres cívicos? Não! (pag. 4).
Jakobson já lembrara que a obra literária não é jamais original, ela participa de uma rede de relações entre ela mesma e as outras obras do mesmo autor, da mesma época, do mesmo género.
Sustentar a tese de que não existe obra original não significa dizer que ela seja destituída de inovação. Ao se inscrever em temas e universos já aludidos em obras anteriores, Eduardo White rompe com o estabelecido, apresenta novas formas de lidar com os mundos interno (pessoal, subjetivo) e externo (o país, os problemas sociais).
De um lado ele desvela as fraquezas do poeta que se confundem com as do humano: É que as pessoas pensam que quando se escreve poesia nós a devemos ser. Mas nem sempre é assim. Também somos os homens com as suas fraquezas e dúvidas, com os seus medos, com os seus mistérios. De modo que, é freqüente ela partir como é freqüente eu escrever-lhe em face e sobre isso. É a vida. Aliás é a minha vida, de outro, ele ironiza com o poder: Num País onde se rouba quase tudo, já nem tempo há para se roubar a poetas. E logo poetas, meu caro, e logo poetas roubados num país onde eles são mais pobres do que por natureza. (pags.40-. 41)
A escrita literária de Eduardo White, mesmo que se vincule a “função de socialização", no dizer de Kandjimbo (2002), assume veemente compromisso com a palavra, com inovações de linguagem que se exibem na materialidade do texto escrito, em sua textualidade.
E White pode ser visto por essa medida. Com um irónico exercício do estilo, ele expressa esse equivalente emocional do pensamento por meio da poética do fragmento. Com parágrafos iniciais aparentemente soltos, o poeta vai compondo gradativamente um texto único. Em muitas páginas descobrem-se frases intencionalmente autónomas, mas que se instituem em remissão a tantas outras que as antecederam: Mas o país não está bom. O País não está bom.(pag. 11)
Do ponto de vista estrutural, toda a poesia whiteana “caracteriza-se pela experiência da fragmentação, da multiplicidade descontínua de matrizes composicionais, do desenvolvimento assimétrico das partes isoladas, as quais se reúnem uma “espécie de todo”, isto é, no mosaico do organismo poemático maior”. (Junqueira, 2004: 18).
Inegavelmente, a sua obra tem como espinha dorsal poemas separados, fragmentados que vão se ordenando segundo uma sequência lógica que se enreda por meio de temas, personagens e cenários como a criança, o velho, o país, a natureza, o louco, a mulher, o amor, o próprio poeta, que pode ser cada um (a) de nós e vice-versa. Todos esses elementos comparecem em Até amanhã coração como dever de ofício, como fonte de inspiração. Todo(a) poeta tem seus (uas) fontes de inspiração e White se acerca da sua de forma visceral: O amor. Essa palavra tão intrínseca aos meus poemas (...). Por amor os meus versos respiram, acendem-se, levantam-se da tinta que os conteve. (pags. 76-77)
À guisa de introdução, White já se apóia em mais uma das suas fontes de inspiração, a criança: “Pouca gente sabe ser criança, pouca gente tem a coragem de descer à pequenez do aventureiro e frágil sonhador que ela é, à indimensionável pureza que representa. Uma criança não é propriamente um anjo, mas as suas asas”.
Essa constatação do poeta oferece elementos que desenham o universo sobre o qual ele se movimenta.
Para a criança, o quotidiano não é fonte de monotonia. É fonte permanente de espanto e, portanto, de novidade. O espanto da criança, para o adulto, corresponde a uma falta de saber sobre determinada coisa. Na verdade, considera o psicanalista Didier-Weill, “o olhar espantado da criança é testemunho de que ela vê algo que o adulto cessou de ver”. (1997: 26).
Picasso costumava dizer em entrevistas que sua bússola era a tentativa de reencontrar o olhar que tinha sido dele aos dois anos. A inocência da criança serve de motor para mudanças, num exercício infindável de criatividade, porque resistente ao pronto e acabado.
É assim, como uma criança, que White comporta-se. Ao constatar as assimetrias sociais do país, expressas, por exemplo, na dicotomia desenvolvimento e miséria humana . White não se cansa de inventar, de apostar no novo, de voar, de sonhar, de se lançar: Então é deste modo que te afirmo: Agora beijo-te e esse beijo é a bandeira com que visto a minha cidadania. O de moçambicano sonhando-se com a outra liberdade que tarda, a do direito da liberdade de beijar-te num país qualquer, com dinheiro no bolso, a pensarmos felizes na nossa viagem de regresso (...). (pag.33).
A mulher amada é um dos sustentáculos, outra fonte de inspiração para os seus lampejos de esperança. Do lugar introspectivo em que vê o mundo, o quarto, o espaço subjetivo, White enamora e admira Guta, que o faz ver o mundo a partir de tons cromáticos. Do azul (símbolo de beleza, de alegria, de calmaria) ao cinza (sinal de tristeza, fealdade, amargura), White se orienta de acordo com os tons de cada momento vividos ao lado da mulher: a Guta veste-se e a casa fica mais azul ainda. Cheia de estrelas espalhadas pelo chão. Está bonito o Mundo, está tranquilo e mágico como uma mulher que se veste. Respiro o poeta na cor achocolatada da Guta. Aveludada mulher que me atura. (pag.34)
Atravessando pelos labirintos da linguagem, Eduardo White atravessa o país, o seu mundo interno, as quedas subjetivas inevitáveis. Interpela o país, o poder. Até Deus é espreitado pela cortante palavra do poeta. Ele não se resigna com o sofrimento terreno à espera do paraíso celestial: É tão mórbido, assim, o futuro que nos está predestinado? Esta disciplina do horror e do sacrifício, do fogo e do solistício? É Tão cruel a dor que nos vaticinas, a miséria que nos reservaste? (pag. 67).
Esse conjunto de coisas forma o tecido da poesia de White neste Até amanhã coração. É mais um presente para o(a) leitor(a) que terá acesso a obra de um poeta que não deixa de ser criança, amante, eterno apaixonado pelo país e pelas mulheres. Com mestria do velho, as suas palavras, em cada empreendimento, ganham densidade e escapam a qualquer tentativa de enquadramento. O mistério nas letras, conforme diz Todorov, tem isto de atraente: torna-se mais espesso à medida que se tenta dissipá-lo (1970). E é assim com Eduardo White. Eis a beleza de mais um gesto deste poeta.
* Prefaciador do livro do escritor Eduardo White - até amanhã coração- que hoje é lançado em Maputo
VERTICAL - 30.06.2005