Nova biografia coloca líder chinês ao lado de Hitler e Estaline como um dos maiores sanguinários.O "Grande Timoneiro" matou 70 milhões, criou o seu mito e durante 25 anos não tomou banho
Marina C. Ramos( [email protected])
Assassino, mulherengo, mentiroso e manipulador são alguns dos mimos com que Mao Tse-Tung é brindado na biografia que a escritora britânica de ascendência chinesa Jung Chang – mundialmente conhecida pelo "best seller" "Cisnes Selvagens" – acabou de publicar no Reino Unido. "Mao: The Unknown Story" desmonta os principais mitos surgidos em torno do autoritário e cruel líder comunista ao mostrá-lo como um político impedioso e maníaco, sem escrúpulos nem piedade, capaz de tudo para alcançar (e manter) o poder.
Publicado no início da década de 90, após as manifestações de Tiananmen, "Cisnes Selvagens" descreve os horrores vividos por três gerações de chinesas e tornou-se um fenómeno mundial, espécie de introdução ao que ali se passara durante o século passado.
Os dez milhões de exemplares permitiram a Jung Chang passar os últimos anos a vasculhar arquivos em 38 países durante a longa pesquisa, que incluiu entrevistas com dezenas de personalidades. Henry Kissinger, Dalai Lama, Lech Walesa, George Bush e Imelda Marcos são citados na extensa bibliografia que encerra as 800 páginas, onde se conclui que "Mao foi responsável por 70 milhões de mortos em tempo de paz". Número que o transforma, segundo a autora, no maior assassino da História contemporânea, devido ao clima de medo, suspeição e terror que criou: "A diferença em relação a Hitler e Estaline é que Mao gostava que as torturas e execuções fossem públicas, enquanto eles preferiam o sigilo."
Com o apoio do marido, o historiador britânico Jon Halliday, a escritora descobriu lendas e mentiras que Mao impôs como verdades. Embora o governo chinês tenha ordenado aos poucos sobreviventes do restrito círculo do "Grande Timoneiro" que pensassem bem no que diziam, o aviso de pouco valeu, já que muitos desobedeceram, desejosos de denunciar o que durante décadas calaram.
Assim se desmonta a absoluta fraude que foi a Longa Marcha. Jung Chang explica como Mao passou os nove mil quilómetros no conforto da liteira que ele próprio desenhou, carregado por outros, enquanto descontraidamente fumava e lia. Conclui também que Mão conseguiu ser odiado por todos, se enganou nas tácticas e estratégias adoptadas e só sobreviveu porque o presidente Chiang Kai-Shek permitiu que os vermelhos avançassem. Porque – sustentam com base em documentos e testemunhos – Estaline mantinha refém o filho do presidente, que depois fugiria para Taiwan, motivo pelo qual este assinara um pacto secreto.
Mao também não terá sido arrastado para a Guerra da Coreia pelo comunista Kim Il-Sung e pela invasão norte-americana. Pelo contrário, terá desejado o conflito, mesmo conhecendo as gigantescas perdas que implicava, disposto a trocar a vida de milhares de soldados pela ajuda de Estaline – que não conseguiu – para montar uma indústria de armamento. Tal como não se incomodou com a invasão japonesa durante a II Guerra Mundial, já que, secretamente, acordara com o responsável soviético a divisão da China em que seria o dirigente-fantoche de um Estado bastante mais pequeno que a actual república popular.
Estas são algumas revelações contidas numa biografia onde nem todos os factos apresentados são novos. Um dos seus secretários já afirmou que Mao não se incomodava com o número de mortos desde que atingisse o que queria, tal como são conhecidos os lucrativos negócios de droga que geriu com afinco e dedicação. O líder comunista tornou-se plantador de ópio no início dos anos 40, actividade que lhe valia 60 milhões de dólares anuais, valor que os autores estimam ser hoje equivalente a 640 milhões. Desistiu de tão rendível esquema só porque a ganância entre os membros do partido levou ao excesso de produção e baixou drasticamente os preços.
Monstro de Pequim.
A sua monstruosidade foi igualmente bem documentada na biografia publicada pelo médico pessoal, Li Zhisui, em 1994. O facto de não tomar banho – e não lavar os dentes – durante quase um quarto de século não impediu Mao de ser um mulherengo compulsivo, admirador confesso de menores. Em 1953, foi mesmo criada uma trupe especial de jovens cuja única finalidade era satisfazer sexualmente o camarada. Quem nadava todos os dias e exigia ser lavado com toalhas aquecidas descartava-se delas com a mesma velocidade com que ordenava execuções: ao longo de décadas desenvolveu o hábito sádico de assistir a torturas e mortes violentas, admirando com gozo especial as imagens das sevícias exercidas sobre outros membros do partido. E nem pelos filhos demonstrou qualquer afeição. Durante a Longa Marcha, ordenou que um deles, recém-nascido, fosse abandonado à sua sorte. Ao ser chantageado por Estaline, que ameaçava raptar outro, não hesitou: "Pode ficar com ele."
Amante da boa vida, adorava ler, fumar e comer. Mas, como detestava peixe congelado e apreciava uma determinada espécie, obrigava alguns súbditos – sempre que o seu apetite assim o exigia – a cavalgarem mil quilómetros até Pequim com o alimento na garupa. Sempre viveu como um imperador, com 50 residências oficiais espalhadas pelo extenso território, todas construídas para resistirem a um bombardeamento, mesmo que nuclear.
Não era grande orador e o que o movia não era a ideologia ou o idealismo, afirma-se em "Mao:The Unknown Story". Antes o absoluto ódio que sentia pelos que dizia servir enquanto presidente da República Popular. Durante o Grande Salto em Frente, no final dos anos 50, vendeu comida à União Soviética em troca de armas, enquanto 38 milhões morriam naquela que ainda é conhecida como "a maior fome da História chinesa". Indiferente ao sofrimento alheio, com os trabalhadores a cumprirem jornadas de 20 horas, sugeriu que comessem folhas, decidido a dar uma imagem de opulência quando o país se afundava. "Mao foi o único milionário criado pela China de Mao", escreve Jung Chang, explicando que os direitos obtidos com a venda do célebre "Livro Vermelho" encheram os bolsos do líder, que incentivava a leitura mas proibia e censurava a maioria dos escritores.
A anormal ânsia de poder era a única razão que norteava as decisões de quem sonhava transformar o país numa superpotência. Descrito como um "oportunista egomaníaco", estava disposto "a matar metade da população chinesa" para alcançar o tão desejado poderio militar. Acusações que a dupla de autores prova com documentos e testemunhos citados ao longo das 800 páginas, escritas sem qualquer intuito de vingança.
Pelo menos assim jurou Jung Chang durante as entrevistas de promoção. Quis escrever uma biografia justa e objectiva porque, ao contrário do que possa pensar-se, já não é assombrada pelo passado. "Penso que este livro agitará o mundo e ajudará a moldar o que pensamos da China", disse ao "Guardian".
A HISTÓRIA CONHECIDA
Rui Gamito
Durante anos atirou-se para o chão sempre que ouvia aproximar-se um automóvel a baixa velocidade. Pensava que seria repatriada a qualquer momento. Que a enviariam de novo para a China e para o terrível campo de trabalho, no sopé dos Himalaias, onde aprendera a ser camponesa.
Jung Chang diz que o medo paralisante desapareceu ao escrever "Cisnes Selvagens", ajuste de contas com o passado, relato dos tempos em que meninas eram gueixas ao serviço de senhores que lhes mandavam enfaixar os pés, descrição do sofrimento infligido aos membros do Partido Comunista Chinês por Mao Tse-Tung durante a Revolução Cultural, narrada pela voz de três gerações.
Livro de cabeceira de Margaret Thatcher, "Cisnes Selvagens" depressa se tornou "best seller", traduzido para 33 línguas mas proibido na China. Editado em português pela Quetzal, a biografia conta como uma guarda vermelha de 14 anos acreditou no líder ao ponto de destruir flores sem se questionar porquê, enquanto gritava "slogans" e perseguia professores – ainda hoje recusa cortar o longo cabelo por recordar como em adolescente era obrigada a escanhoar o couro cabeludo.
Convicções então inabaláveis que começaram a desvanecer-se ao assistir à denúncia e brutal detenção dos pais – a mãe foi obrigada a caminhar em cima de cacos de vidro e a passear pelas ruas com um cartaz ao pescoço onde se declarava traidora; o pai enlouqueceu no remoto campo de trabalho para onde foi enviado ao não assinar um cartaz de propaganda, gritando: "Não venderei a alma."
Antes de ser uma das primeiras chinesas a estudar no estrangeiro, Jung Chang foi electricista, metalúrgica, e conheceu a dureza da lavoura. Ao chegar a Londres, pensou que aterrara noutro planeta. Em Heathrow entrou confiante na casa de banho dos homens, já que as calças eram a única vestimenta que conhecia.
Aos 53 anos, está a traduzir para chinês "Mao: The Unknown Story", consciente de que a publicação jamais será autorizada por Pequim. Mesmo que em causa não esteja uma vingança pessoal, não descansa enquanto o retrato de Mao continuar pendurado na Praça de Tiananmen.
9 de Junho de 2005 - O INDEPENDENTE