Escrever sobre a poesia de Luís Carlos Patraquim é mergulhar no processo que o sociólogo e antropólogo cubano Fernando Ortiz definiu, na década de 1940, como transculturação, que significa não apenas a aquisição de uma cultura distinta em que outra se perde ou fica desenraizada, como quer dizer o termo aculturação (do inglês acculturation), mas também todas as fases do processo transitivo de uma cultura para outra, com a conseqüente criação de novos fenômenos culturais.
Essa definição, que pode ser lida em Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (Barcelona, Editorial Ariel, 1976), serviu de base para o ensaio “Nicolás Guillén: o itinerário de um poeta”, que publiquei na Revista Iberoamericana, da Universidade de Pittsburgh, Pensylvania, EUA, nº 153-153, julho-dezembro de 1990, pp.1171-1185, mas pode ajudar também a compreender a poesia não só de Patraquim como de outros poetas moçambicanos de sua geração, como Eduardo White, Nelson Saúte e outros, que avançaram pelas trilhas abertas por Luandino Vieira e José Craveirinha, a maioria sob uma certa influência dos brasileiros Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto.
A princípio, pode-se imaginar que o processo transculturador na antiga África portuguesa não teve a influência de uma terceira cultura, a indígena, como a Cuba de Nicolás Guillén, com seus índios ciboneies e tainos, mas só quem desconhece a diversidade de nações que compõem o mundo africano pode se deixar levar por esse engano. Na poesia de Guillén, já não há um dialeto negro nem uma fonética diferente da do resto dos cubanos, mas os recursos estilíticos e as onomatopéias que utiliza, com certeza, foram os negros que transferiram para o espanhol falado em Cuba.
A exemplo da poesia de Guillén, na de Patraquim, nascido em Lourenço Marques (atual Maputo), Moçambique, em 1953, de descendência portuguesa, pode-se surpreender a presença de vocábulos procedentes não só de línguas africanas, como o macua e o ronga, mas também do inglês e do africaner, como se vê em O osso côncavo e outros poemas, antologia que acaba de sair reunindo grande parte de poemas publicados anteriormente em Monção (1980), A inadiável viagem (1985), Vinte e tal formulações e uma elegia carnívora (1991), Mariscando luas (1992) e Lidemburgo Blues (1997).
Por ter passado para a poesia esse processo transculturador vivido em África, Patraquim tornou-se, desde que apareceu no cenário cultural lusófono no começo da década de 1980, uma das vozes mais inovadoras da poesia moçambicana, afastando-se do tom triunfalista de caráter eminentemente ideológico que marcou a produção poética da fase pós-independência. Aliás, o triunfalismo e o engajamento político nunca serviram para enriquecer a poesia de ninguém, como mostra a fase populista de Ferreira Gullar na décadas de 50 e 60, por exemplo.
Por se colocar à distância da radicalização política, a poesia de Patraquim veio contrastar “com a postura, muitas vezes, vitoriosa do discurso mimético e pleno, erguido da então recente independência política”, fazendo uma “escolha porventura difícil, subvertendo a monção favorável do slogan, da palavra de ordem e, diga-se também, o vazio editorial que, na altura, o primeiro livro do poeta veio preencher”, como diz no posfácio Ana Mafalda Leite, aliás, com conhecimento de causa porque testemunha desses acontecimentos. Co-autora com Patraquim e Roberto Chichorro de Mariscando luas, Ana Mafalda tem sido, por assim dizer, uma espécie de anjo protetor dos poetas moçambicanos da nova geração com suas análises percucientes e que muito tem ajudado a divulgar essa produção.
Diz Ana Mafalda que a escrita de Patraquim se enraíza nos múltiplos modernismos do século 20 e “é alimentada por uma força pictórica e simbólica e por uma rítmica que faz dos textos espaços de mediação reflexiva e onírica, em que o sentido se vislumbra e anuncia, refeito num movimento de recordações de leitura”. O que diz a crítica pode ser conferido com facilidade no poema “Muhípiti”, em homenagem à Ilha de Moçambique, pedaço de terra perdido no oceano Índico que teve a ventura de receber em épocas distintas três dos maiores cultores da língua portuguesa – Luís de Camões, Manuel Maria de Barbosa du Bocage e Tomás Antônio Gonzaga.
É onde deponho todas as armas. Uma palmeira
harmonizando-nos o sonho. A sombra.
Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como mãos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis. É onde somos inúteis.
Puros objectos naturais. Uma palmeira
de missangas com o sol. Cantando.
Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes. A estatuária nas verilhas.
Golfando. Maconde não petrificada (...).
Neste poema, no qual estão presentes todos os elementos que formam a arte poética de Patraquim, pode-se perceber o olhar luso-africano de quem, tendo vivido até a juventude em Maputo, evoca a magia da Ilha de Moçambique, a primeira capital da possessões portuguesas da chamada contracosta africana, que conheceu de perto em várias oportunidades e à qual pretende ainda voltar outras vezes. Conheceu-a também da memória dos outros que viveram na Muipiti, ilha em macua, o dialeto do nação predominante no local. Por isso, trata de fazer homenagem a outros poetas que antes dele a cultuaram, como Rui Knopfli em “A Ilha de Próspero”. Aliás, quem conhece o poema de Knopfli descobre com certa facilidade as referências metalingüísticas que Patraquim faz ao poeta.
É, porém, em “Lisabona”, nome antigo de Lisboa, que Patraquim deixa de ser só africano para se assumir como o poeta da lusofonia. Com ritmo preciso e regular, faz o percurso de onde tudo começou — ali onde a terra se acaba e o mar começa —, desde o “mal cozinhado”, lupanar a que Camões freqüentou, vai às áfricas e américas para retornar ao Lumiar, pedaço africano de Lisboa agora no século 21, passando por Luanda, Maputo, Guiné, o Nordeste brasileiro e a “traição de Calabar”, recordando que tudo começou na ultramarina cidade, essa “Lisboa alvoroçada”.
(...)Ó camoniano fado, em verdade rasga-me esses versos por aí, tenórios,
e leva-nos, co´as pragas e massinguita das Ethiópias perdidas,
Ao mal-cozinhado, ao tempero finíssimo de oitavas e tercetos,
À traição de Calabar, às areias onde se nasce,
Vulcânico; em verdade, Lisabona de Luanda e Maputo,
E os nomes da Guiné: a algaraviada crioulando-te os frisos
de gurupés e ouro preto;
E limpa-me esse branco, tão sujo, ó ultramarina cidade,
Lisabona alvoroçada!
Poeta fino, às vezes hierático, Patraquim é um consumado artista do verso que sabe como pagar o seu mais íntimo tributo, evocando aqui e ali Whitman, Cesário Verde, Pessoa, Camões, Drummond, sem esquecer os luso-africanos que vieram antes dele como Rui Knopfli, David Mestre, José Craveirinha e outros.
Colaborador do jornal A Voz de Moçambique, refugiou-se na Suécia em 1973. Regressou ao país em janeiro de 1975, depois da independência, integrando os quadros do jornal A Tribuna. Membro do núcleo fundador da Agência de Informação de Moçambique e do Instituto Nacional de Cinema de 1977 a 1986 como roteirista/argumentista e redator do jornal cinematográfico Kuxa Kanema, foi criador e coordenador da Gazeta de Artes e Letras (1984-1986) da revista Tempo.
Desde 1986, reside em Lisboa e colabora na imprensa moçambicana e portuguesa, faz roteiros para cinema e escreve para teatro. Foi consultor para do programa Acontece, de Carlos Pinto Coelho, da Rádio e Televisão Portuguesa, (RTP) e é comentarista da Rádio Difusão Portuguesa (RDP)-África. Foi galardoado com o Prêmio Nacional de Poesia (Moçambique) em 1995. Merece muito mais.
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O OSSO CÔNCAVO E OUTROS POEMAS, de Luís Carlos Patraquim. Lisboa, Editorial Caminho, 191 págs., 2005. www.editorial-caminho.pt
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*Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]
Nota: Carlos Patraquim na foto