26/06/2005 – 12h00
A África Subsaariana, região do continente onde fica Moçambique, tem 26 milhões de pessoas vivendo com HIV/aids. Isso equivale a 65% de toda a população afetada pela epidemia no planeta, que é de 40 milhões de pessoas. Os números são do último boletim do Programa Conjunto das Nações Unidas para HIV/Aids (Unaids), divulgado em dezembro do ano passado.
100 MIL MORTES POR ANO
Moçambique é do tamanho dos estados de Goiás, Maranhão e Ceará juntos. Tem 20 milhões de habitantes e 1,5 milhão de pessoas infectadas pelo HIV, o que corresponde a 7,5% da população total. A cada ano, a aids mata 100 mil moçambicanos. No Brasil, cuja população é nove vezes maior que a de Moçambique, o número estimado de soropositivos é de 600 mil – 2,5 vezes menos que o total de infectados no país africano.
Em Moçambique, existem 72 mil curandeiros, que cumprem os papéis de guia espiritual e de médicos nos distritos das 11 províncias. Médicos diplomados são somente 500. Uma legião de agências financiadoras e milhões de dólares prometidos por programas internacionais ainda não reverteram a tendência de crescimento da epidemia.
País de língua portuguesa, Moçambique é um dos parceiros do Brasil num programa de cooperação que, sem custos exorbitantes, vem dando certo. É o projeto Ntwanano, que na língua changana, um dos vários dialetos locais, quer dizer aliança e entendimento. O acordo foi assinado há dois anos, entre os Ministérios da Saúde do Brasil e de Moçambique, e tem a participação de organizações não governamentais dos dois países.
MUITO DINHEIRO E POUCA ESPERANÇA
Moçambique tem a cara e os contrastes da África Negra, uma região do continente dominada pela miséria e pela corrupção. E o país vive a mesma tragédia da aids, que assola o continente abaixo da linha do deserto do Saara de forma generalizada. Nessa região, somando adultos e crianças, a vivem com o HIV 25 milhões de pessoas ¬ o equivalente a mais de dois terços de toda população mundial infectada (quase 40 milhões de pessoas).
Em Moçambique, a epidemia de aids também é traduzida por uma realidade alarmante: altíssima taxa de infectados, que em algumas províncias chega a 27% da população sexualmente ativa, e uma média de 500 novas infecções por dia. O país tem 1,5 milhão de pessoas vivendo com HIV/Aids e, só em 2004, a doença matou cerca de 100 mil. Entre 15 e 19 anos, há três meninas infectadas para cada homem.
O Brasil, com 180 milhões de habitantes, população nove vezes maior que a do país africano, tem cerca de 600 mil pessoas vivendo com o vírus ou já doentes. No nosso país, todos os que precisam, recebem medicamentos anti-retrovirais de graça. Em Moçambique, apenas um grupo privilegiado de 5 mil doentes tem tratamento.
Por outro lado, Moçambique tem promessas de ajuda que passam dos 500 milhões de dólares para o período de 2003 a 2007, dinheiro saído dos cofres do Banco Mundial, do Fundo Global, do Fundo Comum , da Fundação Clinton e do Governo dos Estados Unidos. Sem contar as dezenas de Organizações Não Governamentais internacionais, que nem sempre revelam quanto dinheiro aplicam no país. Tudo isso apenas na área do HIV/Aids. As autoridades de Moçambique, no entanto, dizem que até agora só receberam 80 milhões de dólares.
Entre as iniciativas diferenciadas, estão pequenos programas como o Ntwanano, projeto brasileiro que inclui tratamento para cem pacientes, treinamento para médicos e assessoria para organismos civis, que têm contribuído na defesa dos direitos humanos dos doentes. Financiado pela Fundação Ford, o projeto Ntwanano, implantado há dois anos, já custou 300 mil dólares.
VÍRUS NO PRESERVATIVO
Mapeamento feito pelo governo de Moçambique e divulgado em outubro do ano passado revela que falta água na maioria dos postos de saúde do país. Apenas 58,2% das unidades sanitárias usam seringas descartáveis ou, pelo menos, esterilizadas. Uma considerável parcela dos partos realizados, mesmo quando a mãe é comprovadamente soropositiva, é feita sem luvas por conta da falta do insumo. Estima-se que quase 20% das novas infecções pelo HIV ocorram via transmissão vertical ¬ da mãe para filho. A maioria dessas crianças morre antes de completar cinco anos.
Por outro lado, parte da população ainda não acredita na existência do HIV. Essas pessoas imaginam que o vírus vem do próprio preservativo ou aparece por razões sobrenaturais. Com o país dividido por 14 línguas e incontáveis dialetos e culturas diferentes, mais de 60% da população só têm acesso aos curandeiros para tratar problemas de saúde. É um exército de 72 mil curandeiros contra apenas 500 médicos, num país de 20 milhões de habitantes.
Herança do período colonial e da crença de que as nações ricas têm uma dívida com os africanos, a corrupção instalou-se em todos os escalões como um direito adquirido. Todo mundo tenta tirar proveito das situações mais diversas. Mas quem ganha é a elite negra, que desfila pelas ruas de Maputo, a capital, com suas camionetas de cabine dupla e ar condicionado. Na população, o índice de pobreza absoluta atingia 69,4% em 1999.
Nas áreas rurais o analfabetismo passava dos 85%. Mais de 70% dos que viviam nas cidades não tinham eletricidade. E 91% das casas de todo o país não têm água encanada. “Somos dependentes até na corrupção”, diz o moçambicano Mia Couto, 49 anos, considerado um dos 12 maiores escritores africanos do século 20.
IGNORANDO AS TRADIÇÕES
Aparentemente, não é dinheiro que falta em Moçambique. “Falta fazer o dinheiro chegar aos programas que mais necessitam”, diz Telva Barros, do Unaids, o programa das Nações Unidas para a Aids. Além dos fundos multilaterais, há 15 agências de cooperação de países ricos instaladas no país. As grandes ONGs e financiadoras internacionais estão todas ali, muitas funcionando em casas amplas de bairros nobres, cujo aluguel mensal pode passar dos 5 mil dólares. “Algumas chegam ali determinando o que temos de fazer com seu dinheiro”, reclama Diogo Milagre, secretário executivo adjunto do Conselho Nacional de Combate à Sida (Aids).
Poderoso e interministerial, cabe ao CNCS administrar o dinheiro que entra no país e traçar as diretrizes de combate à epidemia. Mas os fundos que chegam do governo dos EUA, por exemplo, vêm com o carimbo de que não podem ser usados para incentivar o uso do preservativo. Devem ser gastos para pregar a abstinência, o retardo no início das relações e a redução no número de parceiros. Algumas instituições religiosas vão pelo mesmo caminho.
Para os especialistas, essa postura ignora totalmente os costumes das diferentes regiões do país. No norte de Moçambique, por exemplo, de maioria muçulmana, a poligamia é prática comum. No litoral da mesma região, relações com múltiplos parceiros, especialmente entre os jovens, são aceitas como regra. Já no sul, de maioria católica, os negros com algum poder ou dinheiro têm várias amantes e namoradas, além da mulher em casa.
Aureliano Biancarelli
Fonte: Programa Nacional DST/Aids |