PUBLICO - 26.7.05
"Agora que o petróleo chega e os políticos se digladiam em volta da
atribuição dos blocos, o próximo golpe será muito mais sangrento",
avisa o major Pereira, que liderou a tentativa de derrubar o poder
são-tomense em Julho de 2003. E alerta: "Os Búfalos continuam
perigosos".
Dois anos depois da sua tentativa de golpe de Estado de Julho de
2003, o major Fernando Pereira gostaria que o mundo se recordasse de
um golpe "sem violência e destinado a enviar uma mensagem à
comunidade internacional sobre a realidade de São Tomé e Príncipe:
uma democracia de fachada onde o Estado não existe, com um Exército
controlado por uma classe de políticos que fazem passar os seus
interesses antes dos da nação e onde a corrupção se intensifica
enquanto o pobre empobrece". Mas é sobretudo a junta que rodeou este
oficial, hoje com 53 anos, que ficará na memória.
Ao seu lado, 15 ex-mercenários são-tomenses, chamados os Búfalos,
faziam parte de uma conjura que visava derrubar a III República deste
micro-Estado da África Equatorial prestes a entrar no clube dos
países petrolíferos do Golfo da Guiné. Fernando Pereira distancia-se
agora dos golpistas, todos eles membros da Frente Democrática Cristã
(FDC).
Do marxismo à democracia
A priori, tudo separava este oficial, formado no início dos anos 80
na Angola descolonizada, na ex-URSS e em Portugal, e estes soldados
da fortuna, recrutados em tempos pela África do Sul do apartheid para
o batalhão Búfalo, a fim de combaterem os movimentos de libertação
marxistas da África Austral.
"Por vezes, é preferível aliar-se com os inimigos", justifica o major
Pereira, a que chamam o Coelho por causa da sua numerosa prole. "Se
não os tivesse controlado, a situação teria verdadeiramente
degenerado", prossegue o oficial, que reivindica 80 euros de soldo
para 29 anos de antiguidade. Estranho golpe de Estado num estranho
país onde nos cruzamos com os antigos conjurados nas esplanadas ou na
praia, em plena liberdade.
Para Alércio Costa, também de 53 anos, chefe dos antigos Búfalos, as
causas do golpe continuam actuais: "Depois do nosso regresso aqui,
nos anos 90, tudo nos prometeram, mas nada vimos. Em 2003, apercebemo-
nos de que era preciso mostrar que as nossas reivindicações eram a
sério. E tanto pior se isto não era democrático. Os mesmos líderes
que tínhamos combatido na nossa juventude continuam no poder.
Passaram foi do marxismo à democracia."
Na sala de Alércio Costa encontramos um DVD intitulado A Grande
Viagem, à imagem do périplo que levou este último, em Abril de 1986,
dos Camarões à Namíbia, então controlada pela África do Sul, e isto
depois de uma incrível deriva austral de 12 dias: "Um barco de 17
metros, 76 homens, o medo e a fome." Serra Leoa, Congo, Libéria, as
zonas cinzentas da África do início dos anos 90. Ironia do destino,
contribuiu mesmo com o seu grupo de mercenários para formar as forças
especiais de Angola do regime de José Eduardo dos Santos, este mesmo
poder "marxista" que tinha combatido alguns anos antes.
Alércio Costa é discreto quanto aos serviços prestados, como guarda-
costa, à família Trovoada, o Presidente que autorizou o regresso dos
Búfalos ao país durante os anos 90. "Reservo isso para um livro",
explica. Uma coisa é certa, segundo cinco dos seus companheiros de
armas encontrados na cidade: "Aprendemos a fazer tudo e conhecemos
tudo sobre a guerra", especificam, orgulhosos de mostrarem o
passaporte sul-africano que Pretória lhes concedeu em recompensa
pelos seus feitos de armas. "Desde que voltámos, somos filhos
abandonados. É como se metêssemos medo. Portanto, não gostamos da
guerra. Tudo o que queremos é trabalhar", queixam-se os cinco
camaradas.
"Os Búfalos são verdadeiros profissionais da guerra e continuam
perigosos", avisa o major Pereira. "Nada foi resolvido desde 2003. Em
vez de atacar os problemas da governação, parece que procuraram
vingar-se no Exército. A nossa guarda-costeira nem sequer tem
barcos!" E adverte: "Agora que o petróleo chega e os políticos se
digladiam em volta da atribuição dos blocos, o próximo golpe será
muito mais sangrento."
Viragem do petróleo
"São Tomé jamais conheceu violência, mesmo sob o regime marxista",
considera o investigador alemão Gerhard Seibert, especialista no
arquipélago. "Aqui não são as Comores, e ainda menos a vizinha Guiné
Equatorial. Não há etnias. Com efeito, tudo vai depender da maneira
como a viragem do petróleo vai ser abordada e do perfil dos
aventureiros que poderão desembarcar: um país de 150 mil habitantes
pode ser facilmente desestabilizado", explica Seibert. Em São Tomé e
Príncipe, um arquipélago que nunca deixou de suscitar cobiça,
continuam a viver, livres e insatisfeitos, antigos mercenários do
petróleo e um major Pereira que se toma pelo "justiceiro" venezuelano
Hugo Chávez.
ALAINVICKY, Exclusivo PÚBIICO/ LIBERATION