Dinis Dzimba não fez buracos nas calças para estar na moda. Se a sua roupa está num estado deplorável é porque é a única que possui; até a guitarra de seis cordas foi feita com uma lata de óleo de cozinha completamente amolgada. Mas toca uma melodia e canta uma canção intitulada «Eggfish» - sobre uma mulher que gosta de passar a manhã na cama - que tem qualquer coisa de mágico e lhe vale um pequeno ajuntamento de admiradores no mercado de Xikelene, em Maputo.
Graças a uma coincidência que geralmente só acontece nos filmes, dois elementos do Ghorwane, um grupo moçambicano conhecido, estão no mercado nesse dia. E quando Dzimba termina o seu concerto improvisado, vão propor-lhe que grave com eles. O jovem toma nota do número; vai telefonar rapidamente, só para verificar se não foi enganado.
Dzimba é apenas um exemplo desta energia musical visível por toda a Maputo, desde o mercado de Xikelene, vasto universo em ebulição onde as cabeças de gado, ainda a pingar sangue, anunciam as traves dos talhos, até à nova discoteca Coconuts, enriquecida com as suas cabeças de cartaz, a sua parceria com uma marca de telemóveis e os seus jogos de luzes.
Tal como sublinha Mia Couto, grande romancista moçambicano, se numerosas línguas faladas no Sul do país não têm uma palavra para designar a cidade, em contrapartida, a expressão da essência desta urbe com um milhão de habitantes deu origem a um verdadeiro género musical, a marrabenta. E a música também faz política: os «rappers» Gpro Fam incluíram nas suas canções contra a corrupção excertos de discursos pronunciados por Samora Machel, grande anticolonialista e primeiro Presidente de Moçambique.
Hoje, um terço dos 19 milhões de moçambicanos vive nas cidades. O país conheceu uma urbanização rápida, durante a interminável guerra que o flagelou, graças ao financiamento da África do Sul do «apartheid». No início do século XX, Maputo ainda é Lourenço Marques, sucursal portuguesa com apenas seis mil almas. A sua população passa para 400 mil nos anos 60 do século passado, com os bares e as casas fechadas da cidade a atrair sul-africanos em massa.
Actualmente, descendo a avenida Marginal, pode-se recuar no tempo e na história política e económica recente de Moçambique. Ainda se vê o esqueleto caduco do hotel Quatro Estações; em 1975, os portugueses, como presente de despedida aos ex-colonizados, esburacaram toda a canalização e encheram os elevadores de cimento.
É também lá que se encontram os casebres das «reed cities» [literalmente, as 'cidades de juncos'], dos bairros de lata que abrigam 80 por cento da população, sem electricidade nem água corrente, e cujos habitantes, à imagem de Dzimba, vivem na precariedade, graças apenas ao sistema D. Aproximadamente 80 por cento dos moçambicanos vivem com menos de 1,5 euros por dia; o país é um dos mais pobres do mundo e a esperança de vida da sua população é de apenas 41 anos. Mas, desde o fim da guerra civil, em 1992, e das primeiras eleições democráticas, a hora do desenvolvimento soou, pelo menos no papel, e o crescimento actual atinge nove por cento.
Hoje, Maputo vê nascer nas suas praias moradias de vários milhões de dólares, ao mesmo tempo que ao longo dos caminhos de terra brotam bairros fechados, onde ainda se vêem crianças a remexer os caixotes do lixo à procura de comida.
Aos olhos da comunidade internacional, Moçambique é uma história de sucesso que ela gostaria de ver com mais frequência. Três eleições realizadas com êxito, uma boa gestão do orçamento pelo Governo e a diminuição da pobreza (desde há cinco anos, a população que vive com menos de 70 cêntimos de euro passou de 70 para 55 por cento) fizeram do país uma etapa obrigatória na última digressão africana que Gordon Brown, o ministro das Finanças do Reino Unido, fez há uns meses. A ajuda britânica disparou em flecha, colocando o país no quinto lugar dos doadores, e Moçambique beneficiou agora do processo de perdão. O país tornou-se a encarnação do sucesso através da ajuda internacional e de uma boa governação.
Cibercafés florescem em Maputo
A acreditar em Michael Baxter, representante do Banco Mundial no Maputo, «Moçambique é inegavelmente um modelo de êxito. Êxito em termos de crescimento e um modelo que mostra aos outros países como tirar melhor partido da ajuda».
Em Maputo, uma das cidades africanas mais vivas e acolhedoras, há certas mudanças que já são visíveis. O sector imobiliário e os cibercafés florescem. O turismo está em plena expansão: o príncipe Harry [de Inglaterra] é um dos numerosos visitantes que já desfrutaram das praias virgens, do mergulho e dos soberbos lagostins gigantes. Se certas ruas, como a Avenida Vladimir Lenine, ainda têm o nome de grandes figuras comunistas e lembram o passado radical da cidade, agora são percorridas por automóveis espalhafatosos, em direcção à Polana, o centro comercial climatizado, ou ao bar Mundo's Sports, onde um atomizador gigante refresca os clientes enquanto beberricam a sua cerveja Laurentina. Mas, quando estes condutores estacionam os veículos, os dolorosos contrastes entre os dois rostos de Maputo reaparecem brutalmente: uma multidão de jovens apressados aflui para disputar o direito de vigiar ou limpar o veículo, por algumas centenas de meticais, o equivalente a poucos cêntimos de euro.
Mia Couto não é apenas romancista; também é biólogo, conferencista sobre ecologia, comentador de imprensa e, ocasionalmente, autor das letras do Ghorwane. Assistiu às profundas mudanças culturais no Maputo. «Alegra-me termos sido capazes de criar estabilidade, de instituir a democracia», afirma, «e estou feliz por ver que os moçambicanos podem criticar abertamente o Governo e que existe uma imprensa numerosa e diversificada no Maputo. Nem todos os países têm essa sorte».
«Restabelecer a paz não era tarefa fácil, mas fizemo-lo e podemos estar orgulhosos disso. Eu estou. Mas não estou orgulhoso das outras razões pelas quais todos apontam Moçambique como um modelo, nomeadamente pela economia de mercado. Queremos resolver problemas complexos com soluções rápidas, remendos... e isso preocupa-me. Não me parece que, neste momento, o futuro do meu país seja muito claro. Hoje, há dois tipos de capitalismo que se confrontam, o capitalismo produtivo e o especulativo e tudo pode acontecer».
Se o mal-estar é palpável em numerosas conversas em Maputo, não é apenas porque a miséria omnipresente continua a ser um grande problema. A outra preocupação é o preço a pagar por fazer um jogo cujas regras são fixadas por capitais ocidentais que põem e dispõem a seu bel-prazer em matéria de dívida e de ajuda internacional. Basta lembrar que foi a hostilidade do Banco Mundial em relação à desregulação do sector da castanha de caju que fez desaparecer 90 por cento dos empregos desta grande indústria exportadora no início dos anos 90. Também há muito quem se queixe dos subsídios concedidos aos agricultores dos países ocidentais, cujo montante excede largamente o da ajuda a África, impedindo a agricultura moçambicana de ser competitiva. E a expansão de Maputo também tem o seu reverso: as cruéis desigualdades visíveis em toda a capital fizeram disparar a corrupção e a delinquência, dois problemas que estiveram no topo das preocupações políticas nas últimas eleições.
Pobreza e delinquência
Temos de reconhecer que, apesar do seu dinamismo e da sua abertura, Moçambique continua a ser um país pobre e carcomido pelos conflitos. «É preciso esperar ainda alguns anos para saber se Maputo é realmente o farol que vai guiar a África... ou se não passa de um luar efémero. Em todo o país, há pessoas honestas, empreendedoras, pessoas que trabalham muito, mas o Estado está minado pela corrupção», comenta Joe Hanlon, especialista em assuntos moçambicanos na Open University do Reino Unido. Os moçambicanos sentem-se nostálgicos da época de Samora Machel, que vêem como um período de integridade, um período sem «luvas». Todos apostam muito na recente eleição de Armando Guebuza, ex-ministro do Interior, cuja reputação de homem de pulso leva a esperar que saberá pôr fim à corrupção e à lentidão da administração.
Eneas Comiche é presidente da Câmara de Maputo. É um antigo combatente, um homem carismático, que goza de uma aura à Mandela e de uma reputação de integridade rara na classe política. Administra uma cidade onde menos de um terço da população tem acesso à água corrente e apenas 40 por cento pode utilizar a electricidade, e dispõe apenas de aproximadamente 10 milhões de euros para pagar aos cerca de 3000 funcionários municipais.
«Não fica muito para investir», explica ele. Ora, a Câmara necessita de fundos para construir estradas, sistemas de evacuação de águas residuais, recolha de lixo... para tudo. E Eneas Comiche também pretende combater o aumento da delinquência e a corrupção que gangrena a vida pública. «A delinquência está estreitamente ligada à pobreza. Combater a pobreza é o nosso primeiro objectivo», declara. «O nosso grande desafio consiste em mudar as mentalidades e em conseguir o empenho dos cidadãos. A luta contra a corrupção é essencial».
Para Fernando Lima, que trabalha para o jornal independente «Savana», a evolução de Maputo tem os seus aspectos positivos e negativos. «Entre todas as liberdades conquistadas, também há liberdade para roubar, liberdade para mentir. Estamos num círculo vicioso», comenta ele com um uísque e uma maçaroca à sua frente. «As pessoas chegaram à cidade durante a guerra, dizendo que era temporário, mas ninguém regressou. Se o lucro da venda de seis garrafas de Cola por dia der para viver, ficam».
José Forjaz, director do Departamento de Arquitectura e Urbanismo da Universidade Eduardo Mondlane, considera que é na Educação que Moçambique deve depositar todas as suas esperanças. «O orçamento do Ministério da Educação é superior ao da Defesa e está certo, mas só menos de 40 por cento das crianças são escolarizadas. A inteligência é a nossa única esperança. Fica menos caro formar intelectos do que desenvolver uma indústria», lembra ele. «A inteligência é a nossa única esperança. Fica menos caro formar intelectos do que desenvolver uma indústria».
«O que nos faz falta é um projecto», avança Erik Charas, homem na casa dos 30, à cabeça da Foundation for Community Development, uma organização criada por Graça Machel, viúva de Samora e mulher de Nelson Mandela. «Há 50 anos, tínhamos Julius Nyerere, Kwame Nkrumah e Nelson Mandela, homens com um projecto: tirar a África do colonialismo. Então, havia quem dissesse: 'São jovens, não sabem nada. O colonialismo é um monstro de que nunca nos conseguiremos libertar.' Hoje, temos a impressão de que sabiam melhor aquilo que combatiam do que nós hoje, mas é porque tudo é mais claro retrospectivamente. Vamos recuperar o archote», afirma. «O que nos falta hoje é um projecto para a África de amanhã».
Duncan Campbell
MAIL AND GUARDIAN
Joanesburgo - Texto publicado no Courrier Internacional no dia 8 de Julho