Rafael Marques
A recente decisão do Tribunal Supremo sobre a nulidade dos mandatos presidenciais tem, na realidade, pouco ou nenhum valor jurídico. Trata-se de uma questão moral na sua essência. De forma objectiva, a maka é política.
Na sequência da referida decisão, o cidadão José Eduardo dos Santos, que há 24 anos é Presidente da República, tem um argumento legal para se manter no poder por mais três mandatos (15 anos). Pode concorrer às eleições que, aparentemente, estão a ser preparadas para o próximo ano.
“Não vamos questionar se é ou não legítimo o mandato assim regulado, quer no plano jurídico, de que já referimos fundamento bastante, quer no plano político. Isto porque o problema da interpretação constitucional tem sempre um elemento político que não deve ser desligado do elemento jurídico, o que justifica a fragilidade interpretativa com cânones juridicamente restritos”, lê-se no acórdão do Tribunal Supremo, de 22 de Julho de 2005.
Em várias ocasiões, o Chefe de Estado assumiu que governava com legitimidade democrática (constitucional), apesar da inconclusiva segunda volta das primeiras e únicas eleições de 1992, que o opunha a Jonas Savimbi. Este seria o seu terceiro e último mandato (2002-2007). Fê-lo ignorando, de forma arrogante, a autoridade competente e as imensas críticas a propósito.
Para o efeito, se aplicou a constatação orwelliana segundo a qual, “a linguagem política é criada de modo a que a mentira soe a verdade, o assassínio seja respeitável e o vento puro tenha uma aparência sólida”.
O país não está longe de acordar ao som de uma campanha para que, por via legal, se confira o título de Presidente Vitalício ao chefe, já que um referendo não seria tão fácil de manipular.
Porquê José Eduardo dos Santos deve continuar a chefiar todos os angolanos? Porquê? Essa é a questão que deve ser debatida, do ponto de vista moral e político. É nesta questão onde se encerram as dúvidas e os medos sobre o processo democrático, que é virtual, e as eleições. Esse é o nó que amordaça o sentido de liberdade e de justiça entre os angolanos.
Importa perguntar, antes de mais, quantos angolanos, na verdade, conhecem o seu presidente para além de efémeras aparências públicas e dos discursos impessoais com que, cada vez menos, brinda à nação? Em 24 anos de poder, esse patriota concedeu, se tanto, duas entrevistas gerais aos órgãos de informação do próprio Estado que tem dirigido. Será por timidez, certamente, dirão os seus conselheiros, amigos e fiéis.
Moral
Do ponto de vista moral, o presidente pode reconhecer que é tempo de se reformar. Pode preferir juntar-se à galeria dos líderes africanos que abandonam o poder por vontade própria. Ao agirem desse modo, esses conferem maior credibilidade aos processos democráticos nos seus países bem como imprimem novas dinâmicas de mudança. O último a juntar-se a essa galeria foi Joaquim Chissano, de Moçambique, ora agraciado com um alto cargo nas Nações Unidas.
Ao adoptar essa rota, a sociedade angolana poderá perdoar-lhe as fraquezas humanas e o mal que tem causado a este povo. Poderá abandonar o poder pelo tapete vermelho, com honras e a glória do bom senso.
Quanto ao seu partido, o MPLA, este terá caminho aberto para a renovação, para a regeneração que desesperadamente precisa para enfrentar os desafios do futuro. O MPLA gaba-se, e com razão, de ter nas suas fileiras os melhores quadros angolanos, bem como a maioria. Então, porquê parecer refém, depender de forma obsessiva, das qualidades e defeitos de um só homem?
Uma saída voluntária seria a melhor prenda que Dos Santos poderia oferecer aos angolanos, agastados e resignados com uma suposta falta de alternativas. A sua saída seria a melhor alternativa para os seus compatriotas.
Escolher o caminho da continuidade é seguir os trilhos de Mobutu que às pressas deixou a presidência num avião de carga russo, que transportava munições para a UNITA. Tendo sido recusada a sua entrada no Andulo, segundo a versão de um alto dirigente do Galo Negro, Mobutu acabou apátrida em Marrocos.
Lembremo-nos todos dos conselhos transmitidos a Savimbi. Acusávamo-lo de desmesurada ambição pelo poder. E Dos Santos?
Político
Para determinados sectores da sociedade, o José tem sido o factor de estabilidade do poder, o símbolo de união do MPLA, a referência na partilha do que é alheio, do país, o defensor da elite, dos interesses estrangeiros e o cultor da personalidade.
As suas qualidades atingiram o apogeu com o triunfo sobre o seu arqui-inimigo Jonas Savimbi, que acabou morto. É um homem que mantém sempre o mesmo tom de voz e o semblante quando aparece em público, sabe gerir as suas emoções, o seu verdadeiro eu. Só se lhe conhece efectivamente a capa. Portanto, um político por quem é difícil despertar sentimentos fortes, de amor ou de ódio. Cultiva a superficialidade.
É essa superficialidade que continua a fazer de Angola um país do ridículo. É essa superficialidade que mascara algo mais trágico do que a ditadura. A nossa cumplicidade. Ao invés de agirmos, como cidadãos, na defesa dos nossos interesses ficamo-nos apenas pela popular pergunta “vamos fazer mais como então?” Em surdina, outra questão começa a ser mais cómoda, “votar em quem?”
O país está cada vez melhor para os interesses estrangeiros. As facilidades são imensas e há a simpatia, a passividade e a submissão dos angolanos – mais preocupados em levar o pão à boca ou com a banga.
O país continua a ser devorado pela corrupção, pela incompetência e o desmazelo que são as instituições do Estado. O chefe serve-se dessa superficialidade, que a todos atinge, para garantir a segurança e a riqueza dos que o promovem. Estes, por sua vez, servem-se dele como o próximo e único culpado das desgraças do país. Antes era Savimbi.
Amanhã, quando o povo exigir justiça dirão apenas que andaram a cumprir ordens superiores, do chefe máximo. Nenhum partido no poder jamais assumirá responsabilidade colectiva pelo saque e pela destruição do país. Alguma vez o MPLA assumiria falta pela voracidade com que a família presidencial – a imprensa independente acusa – constrói o seu império patrimonial e financeiro?
Os três últimos anos de paz comprovaram que a ausência de guerra em nada alterou o comportamento e o estilo de governação de José Eduardo dos Santos. Ainda não estancou o saque, a corrupção, a incompetência e o profundo desprezo que a elite dirigente nutre pela maioria da população angolana.
Não será a sua permanência no poder apenas um expediente para legitimar uma situação que ultrapassa os conceitos mais absurdos do neo-colonialismo?
Se José Eduardo dos Santos apresentar a sua candidatura para o bem da reconciliação, da estabilidade e da dignidade dos angolanos, então, que desça do pedestal e venha ter com a sociedade, para se dialogar de forma transparente e aberta sobre o que está mal em Angola e o que deve ser feito para restituir a liberdade e a justiça aos cidadãos.
Noutro cenário, menos construtivo, os cidadãos conscientes poderão resistir, de forma pro-activa, pacífica e inteligente contra as tentativas de legitimação do neo-colonialismo em Angola.
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Artigo publicado no Semanário A Capital, 30 de Julho de 2005, pág. 9, nº164.