PUBLICO - 17.7.05
Por Nuno Sá Lourenço
Poucos anos depois da democratização e da descolonização, Portugal
alterou a sua Lei da Nacionalidade. Na altura, o Governo justificou a
mudança com a reparação de injustiças contra os emigrantes. Mas os
motivos para alterar o princípio do jus soli para jus sanguini foram
menos altruístas do que à primeira vista podiam parecer.
A aprovação da Lei da Nacionalidade que o Governo de José Sócrates se
prepara agora para alterar representou em 1981 uma mudança radical no
critério de atribuição daquele direito. Enquanto que a lei do Estado
Novo, datada de 1959, consagrava o princípio Ao jus soli -
nacionalidade garantida para todos os que nascessem em território
nacional - a partir de 1981 esse direito foi reduzido aos descendentes de cidadãos portugueses.
Na altura os deputados e membros do Governo AD (Aliança Democrática),
liderado por Pinto Balsemão, justificaram a mudança como uma
reparação a direitos injustamente recusados aos emigrantes
portugueses e outras faixas da população.
No entanto, uma das mais fortes razões para a alteração decorreu de
algo que os responsáveis nunca quiseram admitir declaradamente. Ainda
hoje existe entre os deputados dificuldade em o reconhecer. "Não se
dizia abertamente que era esse o motivo mas é evidente que teve de
haver um afunilamento [da concessão da nacionalidade]". A frase foi
proferida por um ex-parlamentar que esteve presente no debate de 11
de Junho de 1981 onde se discutiu a lei número 37/81. "Se nada
tivesse sido feito, podia ter aqui dois, três ou quatro milhões de
angolanos, moçambicanos ou cabo-verdianos a reclamar a nacionalidade
portuguesa", admite este antigo deputado em conversa com o PÚBLICO,
mas pedindo ainda hoje para não ser identificado ao fazer estas
afirmações.
Mais do que atentos aos emigrantes, os responsáveis políticos de
então receavam a inundação do país por habitantes das ex-colónias,
reclamando o direito de nacionalidade da antiga potência colonial. A
situação criava igualmente dificuldades nas relações de Portugal com
os novos países que, por sua vez, receavam perder quantidades
significativas das suas populações.
O receio era tal que uma das propostas da altura - que abria a porta
à concessão de nacionalidade para cidadãos das ex-colónias - foi
retirada durante a discussão. A proposta defendia a revisão de um
controverso decreto-lei - n°308-A/ 75 - que balizava esta situação. O
agora reputado constitucionalista e na altura deputado pela ASDI,
Jorge Miranda, fora o seu proponente. No debate parlamentar em que a
lei foi então discutida na generalidade, Jorge Miranda mudara já,
contudo, de opinião e admitia de forma implícita o real problema em
causa: "Não é que o Estado português não possa considerar seus
cidadãos pessoas que com ele tenham laços efectivos. Só que, tão
melindrosa é a questão e tão imperiosa a necessidade de não
ressurgirem traumas que toda a prudência é pouca. Por isso o artigo
nono do meu projecto deverá ter-se por retirado".
Esse recuo foi elogiado ao longo do debate por outras forças
políticas, mas a verdade é que apenas um deputado durante o debate
não teve problemas em tocar com o dedo na ferida. A intervenção do
socialista António de Almeida Santos - que mais tarde seria
Presidente da Assembleia da República e antes havia tutelado a pasta
governamental da descolonização – acabou por levantar o véu sobre o
motivo da alteração que ninguém queria admitir. A propósito de uma
proposta da AD, que acabaria por não ter seguimento, que "reabria a
porta da cidadania a portugueses domiciliados em território
ultramarino tornado independente à data da respectiva independência",
tais como os que tinham prestado serviço militar no Exército
português ou funcionários da Administração portuguesa. "Seria ou
poderia ser - reconheça-se - a legalização de uma catástrofe.
Que pressão sobre o emprego estaríamos encomendando? Que conflitos?
Que racismo? É esse um drama que a Inglaterra conhece. Abriu
generosamente as portas da cidadania a ex-nacionais de países da
comunidade britânica e foi invadida por legiões de descontentes, até
que teve de abruptamente fechá-las com escândalo do Mundo. Teria sido
esse o nosso drama", rematou então Almeida Santos.
A crueza dos motivos de Almeida Santos para elogiar os limites da
nova Lei da Nacionalidade contrastava assim com os argumentos usados
pelo Governo. Fernando Amaral, então ministro da Administração
Interna, preferiu defender a lei afirmando esta "baseada mais nas
pessoas do que no território". Destacou o facto do Estado português
deixar "de poder declarar a perda de nacionalidade de um qualquer dos
seus cidadãos" - o que acontecia nos tempos do Estado Novo aos
emigrantes quando lhes era concedida a naturalização do país onde
estavam. Até mesmo a situação de uma portuguesa casada com um
estrangeiro foi usada na defesa da nova lei.