PREFÁCIO
Alberto da Costa e Silva
A primeira imagem que guardei de Tomás Antônio Gonzaga foi a de um jovem de perfil, tristonhamente belo, os longos cabelos ondulados a caírem sobre os ombros, a escrever versos no cárcere. O quadro é de João Maximiano Mafra, e os traços do poeta, inteiramente imaginados. Quando preso, provavelmente não era assim, nem tampouco, talvez, um senhor de amplo ventre, a disfarçar o começo da calvície. De cada uma das numerosíssimas feições com que se reconheceu, a olhar-se, ao longo dos anos, nos espelhos, e que mostrou ao afeto, à simpatia, à indiferença, ao aborrecimento, à irritação e à hostilidade de seus contemporâneos, não podia ficar memória, a não ser que algum retrato nos preservasse uma delas, antes que se findasse no momento.
É possível que se visse como, a partir de seus poemas, o imaginou o artista e talvez soubesse, já no exílio, que seus versos eram o que de melhor sobrava de sua biografia, uma biografia a que não faltava a infâmia de haver participado de uma conspiração contra a Coroa.
Adelto Gonçalves não nos redesenha o retrato que não temos. Mas, de certa forma, refaz a imagem que intimamente cada um de nós foi formando do poeta, ao recontar, da perspectiva que lhe deu a leitura rigorosa dos documentos (muitos deles examinados pela primeira vez), a história de Gonzaga, das Marílias que amou ou supôs amar e os poemas que escreveu.
Ao fazê-lo, foi reconstituindo e, portanto, reinventando, como se fosse Frans Hals a pintar os seus grupos de guardas cívicos de Haarlem, não só a comunidade dos conjurados mineiros, mas também Vila Rica, o Brasil e o império de que era parte. Nos grandes quadros coletivos que se sucedem neste livro, nem uma só das figuras aparece, contudo, imóvel, e a maioria está quase sempre a mudar de posição, pobremente humana, tristemente débil nas tentativas de dar realidade às ambições pequeninas e a um grande sonho.
Esta personagem procura a sombra; aquela disfarça um riso maroto; e aquela outra trapaceia sem rebuço. Não falta sequer um iluminado de voz alta e franca, nem quem sempre se atrase, por indeciso ou covarde. Alguns não chegam a anti-heróis, mas quase todos deviam pedir desculpas ao futuro. Adelto Gonçalves não os castiga nem os veste de piedade; mostra-os como lhe parece que foram, enredados na fantasia, na inveja, no engodo, na suspeita mútua, na intriga, na ânsia de enricar, no gosto do mando e das gloríolas, na prevaricação, no peculato e na rapina. Despidos da aura da História, aparecem como gente de seu tempo e de sempre. Desamparados ou esperançosos. Contraditórios. Exuberantes. Amargos. Ofendidos pela pobreza do dia-a-dia ou visionários. Muito menores do que, já os sabendo frágeis, os julgávamos.
Tinham o ouro por húmus. Não ignoravam que era matéria podre, mas esperavam que regenerasse as suas vidas, pois, embora se sentissem americanos brasileiros, continuavam a perseguir o sonho da riqueza rápida, pelo achamento do ouro, da prata e das pedras preciosas – o sonho que habitava o espírito de cada descendente daqueles europeus que a tinham ido buscar, primeiro, na Índia e na pimenta e, depois, no Brasil e no açúcar, em Angola e no escravo. Não nega Adelto Gonçalves que, além de quererem soltar-se das exações da Metrópole, desejavam os inconfidentes a independência e a liberdade. No que parecia o isolamento das montanhas mineiras, três ou quatro deles estavam, aliás, em dia com o pensamento de seu tempo. Aspiravam a continuar no Brasil o processo de libertação do continente que os norte-americanos haviam iniciado havia pouco mais de 20 anos. E sua conjura – e disto às vezes nos esquecemos – antecedeu à Revolução Francesa.
Estavam, ainda que não o soubessem, na vanguarda do século, mas não incluíram nas suas intenções revolucionárias a abolição da escravatura, nisto acompanhando também os próceres que fizeram a independência dos Estados Unidos: nem George Washington nem Thomas Jefferson pensaram em libertar os seus escravos. E não há como esquecer que o próprio Tiradentes possuía quatro negros. Adelto Gonçalves desfaz, porém, a lenda de um Tomás Antônio Gonzaga envolvido com o mercadejo de alma e corpos em Moçambique.
E nos conta como a um outro contemporâneo – que, embora participante das conspirações pela independência, escapou da rede repressora lusitana – foi reservado o destino de tornar-se um dos grandes traficantes negreiros da Contra-Costa. É possível que não passasse pela mente de Eleutério José Delfim que o comércio a que se entregara contrariava inteiramente as suas convicções de republicano, liberal e maçom, pois, ao que parece, a liberdade, a igualdade e a fraternidade não incluíam os africanos. Não deve, por sinal, ter sido ele uma exceção, ainda estando por estudar-se a participação de maços e afrancesados no tráfico negreiro até as vésperas de sua extinção.
Talvez não venhamos a saber jamais, por exemplo, se aquele Domingos José Martins, que foi um dos maiores mercadores de escravos da África Atlântica, herdou, juntamente com o nome, algumas das idéias de seu pai, fuzilado pelos portugueses, por haver sido um dos cabeças da Revolução Pernambucana de 1817.
Uma das boas surpresas deste livro é a reconstrução dos dias moçambicanos de Tomás Antônio Gonzaga. Como tantos outros degredados políticos brasileiros, o poeta seria prontamente admitido na vida local, em funções de responsabilidade. Faltavam pessoas instruídas nas colônias de um Portugal pequeno, pouco povoado e pobre para as exigências de seu enorme império. Por isso, Adelto Gonçalves pode mostrar-nos o poeta, novamente servidor da justiça, a olhar da janela de um prédio do governo as ruas poeirentas do exílio, a acostumar-se a ser novo meio e a emaranhar-se em suas maledicências, animosidades, discórdias e ressentimentos.
Moçambique era em tudo muitíssimo mais magro do que a Vila Rica de onde Gonzaga fora retirado, a Vila Rica que Adelto Gonçalves também traz da História para os nossos olhos, em páginas em que se alternam a descrição contida e o relato afetuoso, o sarcasmo e a comiseração, o entusiasmo e a elegia. Sucedem-se ou se juntam nas ruas e salas da cidade mineira as personagens que ajudariam a entretecer o destino de Gonzaga.
Entram e saem pelas suas portas não só o alferes Joaquim José da Silva Xavier, a pregar idéias nele fortalecidas por José Álvares Maciel, mas também os governadores dom Rodrigo José de Meneses, dom Luís da Cunha Meneses e o visconde de Barbacena, os poetas Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto, a mulher deste. Bárbara Eliodora, o cônego Luís Vieira da Silva, os padres Carlos Correia de Toledo e Melo e José da Silva de Oliveira Rolim, o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade e o coronel Joaquim Silvério dos Reis. As musas de Gonzaga, entre as quais Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, aparecem nas varandas, espreguiçam-se nas redes ou se abanam com leques nas festas do palácio.
Eis que esta obra não é apenas uma nova biografia de Tomás Antônio Gonzaga. É a primeira grande biografia do poeta. Nela, Adelto Gonçalves amplia, completa e retifica as páginas iluminadoras que escreveu, há mais de 57 anos, Rodrigues Lapa. Mas Adelto não se restringe a essa tarefa já por demais importante para os que sabem que Marília de Dirceu é a coleção de poemas líricos mais popular da literatura de língua portuguesa, com um número de edições só superado por Os Lusíadas, conforme nos recordou Manuel Bandeira. Adelto entrega-nos também um instigante ensaio de história social das Minas Gerais e do Moçambique da segunda metade do século XVIII.
Haverá quem estranhe estas ou aquelas conclusões do livro, as considere afoitas, tímidas, exorbitantes ou exageradas e com elas não concorde. Para opor-se, porém, às teses de Adelto Gonçalves e com ele abrir polêmica – ainda que aquele tipo de debate que o leitor pode manter silenciosamente com a página escrita --, terá, para confirmar a interpretação correta dos documentos que as abonam, de reler Gonzaga, um poeta do Iluminismo, nota de pé de página por nota de pé de página. Pois, se este é um livro com o gosto de um jornalista pelo ineditismo e pela surpresa, assenta-se na aplicação e no rigor de um scholar.
Rio de Janeiro, 1998.
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Alberto da Costa e Silva, ex-embaixador do Brasil em Portugal, Nigéria, Colômbia e Paraguai e presidente da Academia Brasileira de Letras em 2002-2003, é autor de A enxada e a lança: a África antes dos portugueses, 1992, A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700, 2002, Um rio chamado Atlântico, 2003, Poemas Reunidos, 2000, Espelho do Príncipe, 1994, e O pardal na janela, 2002, entre outros.
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* Prefácio de Alberto da Costa e Silva escrito para o livro "Gonzaga, um Poeta do Iluminismo" (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), de Adelto Gonçalves, e que consta das págs. 21 a 24 do livro "Das mãos do oleiro" (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005), que acaba de chegar às livrarias