Complementando as duas locais sobre este mesmo título, relembro que Melo Antunes se encontrava em Dar-es-Salam, no quarto 602 do Hotel Quelimanjaro, quando a 1ª CCAV/BCAV8421 foi capturada.
Sobre esta estadia, mantida secreta durante muitos anos, transcrevo o artigo publicado no Diário de Notícias de 21.04.2004, sob o título NO QUARTO 602 DO HOTEL QUELIMANJARO:
"A. R.
Das 163 companhias que existiam Moçambique em 1974, 158 eram comandadas por milicianos. Foi com este dado bem presente que o então comandante Almeida e Costa desembarcou em Lisboa um mês depois da Revolução dos Cravos, tentando obter aquilo que não lhes chegava de Portugal: instruções e directivas. Isto quando a situação se degradava diariamente no território, com a população a exigir a extinção da PIDE, o direito à greve e o levantamento da censura. «Quando ainda havia guerra», recorda.
Mas em Lisboa reinava a confusão total. Dois meses depois, Almeida e Costa é informado que devia acompanhar Melo Antunes a Dar-es-Salam. Como intérprete, tarefa que já desempenhara antes, quando Costa Gomes se encontrou, na Beira, com uma delegação de militares rodesianos.
«É um encontro secreto», explicou-lhe o então número dois da JSN. «Não vão negociar nada, só conversar», dando-lhe a entender que os encontros de Lusaca e de Amesterdão tinham fracassado.
A partida, no entanto, foi sendo sucessivamente adiada. Até que Melo Antunes explica a Almeida e Costa ser preciso convencer Spínola, que mudava de opinião conforme as circunstâncias. A lei n.º 7/74 e o discurso de 27 de Julho mudam tudo. «Fiquei a saber», revela Almeida e Costa, «que elas eram condições sine qua non para a nossa partida». Finalmente embarcam. «Seguidos pela sombra de Aquino de Bragança». Primeiro para Madrid - «Melo Antunes achava que era seguido pela CIA» - e depois Roma, Nairobi e Dar-es-Salam, aonde chegam na tarde de 31 de Julho.
Pouco habituados a estas missões, Melo Antunes e Almeida e Costa só então descobrem que estão isolados e não conseguem comunicar com Lisboa. Além disso ficam em hotéis separados. «Não sei porquê, mas ficámos. Julgo que Melo Antunes aproveitou para falar com muitas pessoas. Sobretudo de Angola. Sei disso porque ele me convidou para um encontro com Agostinho Neto».
A primeira sessão de trabalho realizou-se no dia da chegada: entre as 19.30 e as 21.15. Uma vez que não havia necessidade de um intérpete, Almeida e Costa tornou-se, por iniciativa própria, num note-taker. Por aí se percebe que o segundo dia foi o mais violento. Não só pelas três sessões de trabalho mas, sobretudo, pelo teor das surpresas que os esperam. A começar pela notícia de que a Frelimo tinha capturado uma companhia inteira de militares portugueses em Omar, no norte de Moçambique. Como se isso não bastasse, Samora insistiu que se ouvissem as gravações e as entrevistas feitas com os soldados capturados, apelando à rendição das forças portuguesas. «Foi muito confrangedor», explica Almeida e Costa. Incluindo para o terceiro-mundista Melo Antunes, que não resistiu a um desabafo: «Merda, assim não se pode fazer nada».
A partir daí, concentram-se no teor do memorando que Melo Antunes e Almeida e Costa deverão trazer. Uma tarefa que se prolonga noite dentro, terminando já de madrugada no quarto de Almeida e Costa, onde Chissano - «com uma garrafa de cognac na mão» -, Monteiro e Rebelo se instalam.
Nessa altura, já os dois portugueses tinham percebido que pouco havia a fazer, e que o melhor que conseguiriam trazer estava relacionado com a resolução de questões práticas: a designação de um alto-comissário ou de um presidente de uma junta governativa; a composição do Governo de transição, a criação de uma comissão militar, as empresas, a questão da nacionalidade e a sorte dos moçambicanos que integravam as forças coloniais. Tudo menos Cahora Bassa, que Samora decidira que ficava para Portugal. «Isso é um muro que vocês construíram».
O terceiro e último dia foi preenchido com a leitura do memorando que Chissano, Monteiro e Rebelo tinham escrito na véspera, no quarto 602 do Hotel Kilimanjaro. É então que se dá um pequeno incidente entre Samora e Almeida e Costa, que resolve protestar com o galicismo do termo «engajar» que a Frelimo utiliza profusamente. «Passei pela vergonha de Samora Machel me explicar que a expressão existia. Nunca me esquecerei do que ele disse: Oh, Almeida - nessa altura já nos tratávamos todos por tu - vais ter de habituar que o português já não é só vosso, é de todos».
De regresso a Lisboa, Melo Antunes estava assustadíssmo com a ideia de ter de ir ao Buçaco e de ter de mostrar o memorando da Frelimo ao general Spínola. «E que não era nada daquilo que fora combinado».
Um nervosismo para o qual, ainda hoje, Almeida e Costa só encontra uma explicação. «Intelectualmente superior, corajoso e muito inteligente, Melo Antunes era também um militar. E mesmo ministro sem pasta, não deixava de ser um tenente-coronel que, naquela ocasião, se preparava para ir falar com um general. Sei que isto é muito subjectivo, mas é como eu vejo a situação».
É isso que explica a presença de Almeida Santos, «que tinha o condão de acalmar o general. Como Mário Soares». Melo Antunes recorre ao titular da Coordenação Interterritorial. Foram de helicóptero. Mas Spínola não reage. Limita-se a ler o memorando e a pedir que lhe deixem ficar um exemplar. "
NOTA PARA MEDITAR: Factos tão importantes como estes, não são relatados no livro MELO ANTUNES - O SONHADOR PROGRAMÁTICO, constando apenas uma alusão à sua visita a Dar-es-Salam, na seguinte frase: " tinha ocorrido o tal encontro entre mim e a Frelimo, no mês de Julho, que clarificara posições de um lado e de outro"(pág.112) e nenhuma referência à captura da companhia de OMAR. Porquê, tantos anos depois, pois a edição do livro é de 2004.
Do livro de Clotilde Mesquitela " Moçambique - 7 de Setembro", retiro ainda:
"19 —CONTACTOS DIRECTOS COM SPÍNOLA. A SUA FRASE GERADORA DO SETE DE SETEMBRO
Anunciam os jornais que os dirigentes da FICO se iriam deslocar a Lisboa, a fim de se encontrarem com Spínola. Velez Grilo, Pires Moreira, Gomes dos Santos e Quinaz Pires seguem de Lisboa, num carro da Presidência da República, com destino ao Buçaco, onde Spínola os recebe com a maior simplicidade e até simpatia. Expõem-lhe o que já levavam preparado, e que se resume em 6 alíneas:
a) A Frelimo representa, quando muito, 20% da população total de Moçambique.
b) Não é com armas na mão que se pode impor uma nova ordem democraticamente estabelecida.
c) Os elementos mais marcantes da Frelimo são Changanes, o que pode originar uma luta tribal de extermínio.
d) Moçambique tem confiança absoluta nas palavras do general Spínola, no programa das Forças Armadas, nas repetidas declarações do general Costa Gomes; mas discorda totalmente da orientação tomada nos últimos tempos, que prevê a anulação do referendo, propondo a assinatura de um acordo, sem que o povo, entretanto, seja consultado.
e) Moçambique insiste na salvaguarda, a todo transe, de pessoas e bens da minoria branca, devendo a Metrópole assegurar, caso a política não mude, os meios de transporte bastantes à disposição dos que desejem sair. Nessa evacuação devem ser incluídos os soldados pretos do Exército, especialmente dos GE, GEP, e FLECHAS, que queiram ir para Portugal.
f) O povo espanta-se perante a ineficácia e inoperância do Exército português, considerando, sobretudo, muito grave a sua incapacidade para manter a ordem».
Spínola, contaram eles no regresso, ouviu-os impressionado.
Garantiu-lhes todo o apoio, encorajou-os em persistirem, afirmando-
-Ihes que se sentia traído pelo Exército. Pela primeira vez se ouve dizer (e pela boca de Spínola) que existe um papel com as condições estabelecidas para um acordo a celebrar em Lusaka. Disse-Ihes algumas das condições já estabelecidas e garantiu-lhes que as iria estudar melhor. Anunciou-lhes que brevemente seguiria para Moçambique um alto-comissário, para defender intransigentemente, os direitos dos portugueses. Nessa altura, já se tinha ouvido falar em que seria Melo Antunes. Quis esta delegação obter a confirmação se, de facto, seria ele. Ao ouvir a pergunta, Spínola indignado e descontrolado, grita: «Esse é um comunista, não tenho já dúvidas a esse respeito» Spínola acrescenta ainda: «Se isso acontecer, há que abatê-lo. Têm 3 dias para lhe darem um tiro na cabeça». Estava tão descontrolado o general que acabou por chorar. Este diálogo levou a transferir para o dia seguinte o resto das conversas. Quando ao fim de 24 horas voltam ao Buçaco, Spínola está outro. Diz-lhes que, de momento, já lhe não é possível fazer nada. Mas aconselha-os também: «Vocês têm que fazer alguma coisa lá, que eu possa daqui apoiar. A Província tem que demonstrar a sua posição».
Vieram convencidos que ele tinha aceite... o tal papel... de Lusaka. Mas ainda com as ilusões de que, mostrando a Província o que desejava, Spínola a apoiaria.
Costa Gomes também os recebeu em Lisboa, no palácio da Cova da Moura. Esteve muito tempo com eles, tomou muitos apontamentos, mas nem um só compromisso assumiu, e falou muito pouco. Outros oficiais (Saraiva de Carvalho, Sanches Osório e não sei se mais alguns, também os ouviram na Junta de Salvação Nacional. Encontraram-se ainda também com Victor Crespo, que, antes de os ouvir, procurou fazer o maior elogio à Frelimo. Acabaram por ter que lhe dizer que sabiam muito bem o que era a Frelimo e que tinham vindo numa missão anti-Frelimo, por considerarem esta incapaz de se tornar partido único, e muito menos ainda, para governar, só, Moçambique. A estas entrevistas se referiu, tempos depois, o semanário «Tempo Novo» na sua edição de 13 de Setembro de 1974."
Aliás, Iain Christie, no seu livro "SAMORA - UMA BIOGRAFIA" escreve a páginas 136 e 137:
"Em meados de 1974 o poder imperial português em Moçambique estava em visível derrocada. Colonos abandonavam o país, soldados desertavam, recusavam-se a combater ou pediam à Frelimo cessar-fogos locais, sem autorização do seu governo.
As conversações programadas para Julho de 1974 em Lusaka não se realizaram.
Nesse mês, no entanto, Samora decidiu que tinha chegado o momento de demonstrar como era fácil para a Frelimo tomar as guarnições do exército português ao longo da fronteira com a Tanzania, as mesmas em relação às quais Lázaro Nkavandame tinha vociferado uns anos antes. Soldados da Frelimo cercaram o posto de Namatil (também conhecido como Omar), perto do rio Rovuma, e, usando megafones, disseram aos portugueses que ou se rendiam ou morriam. Todos os 140 portugueses saíram do posto com as mãos no ar mas três conseguiram fugir antes de serem presos.
...
Samora ignorou-os. Ele tinha um diligente enviado, Aquino de Bragança, farejando nos corredores do poder, em Lisboa, e informando sobre quem realmente tinha peso na administração portuguesa. Bragança sabia que Melo Antunes, um oficial do exército anticolonialista, que tinha sido um dos dirigentes do golpe de 25 de Abril, era uma figura-chave. Antunes era o poder por detrás do trono e sabia que era o momento de Portugal acabar com os prejuízos e sair de África. O exército não ia combater.
Embora as conversações marcadas para Julho não tenham ocorrido, os portugueses contactaram a Frelimo e chegaram a acordo que deveriam ser realizados novos contactos. Essas conversações foram realizadas secretamente em Dar-es-Salam, em Agosto, e desta vez a delegação portuguesa era dirigida por um membro do Movimento das Forças Armadas. Mais tarde, no princípio de Setembro, Samora foi a Lusaka onde se encontrou com uma delegação, dirigida por Melo Antunes, que era ministro sem Pasta. Mário Soares tinha sido relegado para número dois da delegação.
Neste encontro Portugal concordou com a entrega do poder em Moçambique à Frelimo. Os Acordos de Lusaka sobre a independência de Moçambique foram assinados no sábado, 7 de Setembro, apenas por Samora Machel, por parte da Frelimo, e por Melo Antunes e mais sete colegas, entre militares e civis, por parte de Portugal."
De "O País sem Rumo" do General António de Spínola, transcrevo (pág.300 e seguintes):
"Entretanto, depois de um conturbado interregno de Governo de cerca de mês e meio, tomava posse, em 11 de Junho, o novo Governador-Geral, Dr. Henrique Soares de Melo (11), a quem foram claramente definidos os novos rumos da política ultramarina em ordem à autodeterminação das populações pela via do sufrágio universal, fórmula que foi incumbido de preparar. Infelizmente, a sua acção viria a ser totalmente ultrapassada pela dinâmica do processo revolucionário conduzido pela esquerda militar e exercida em clima instável de transição para novas estruturas de Governo.
Efectivamente, no curto lapso de um mês, era anunciada a constituição de Juntas Governativas para Angola e Moçambique, numa altura em que o MFA local se havia já apoderado do comando da situação e tomado a iniciativa de lançar um apelo à FRELIMO para cessar fogo, apelo que difundiu numa circular enviada a todas as unidades, aos jornais, às estações de rádio e ao próprio Governador-Geral, ao mesmo tempo que, numa acção concertada com as forças políticas frelimistas, incentivava a realização de comícios de confraternização e propaganda do adversário nas regiões da Beira, Vila Pery e Tete, e que entre António Enes e Nampula provocava o levantamento dos nativos contra os fazendeiros com vista a criar um quadro fictício de conotação da FRELIMO com a população negra que, na sua maioria, frontalmente se lhe opunha.
Paralelamente, estabeleciam-se, ao nível das unidades do interior, os primeiros contactos com os chefes regionais da FRELIMO e efectuavam-se reuniões de confraternização, ao mesmo tempo que se lançavam, de avião, sobre as áreas de refúgio das guerrilhas, prospectos alusivos à colaboração daquele Movimento na preparação e no desenrolar do «25 de Abril» e «posters» com as armas dos seus guerrilheiros ensarilhadas com as dos nossos soldados e destes confraternizando com os inimigos de ontem.
A partir daí a situação militar agravou-se em ritmo preocupante. Algumas unidades negaram-se terminantemente a cumprir quaisquer missões operacionais, chegando ao extremo de numa companhia o comandante ter sido preso por sargentos e soldados, e de estes terem resolvido abandonar a localidade que ocupavam; idêntica atitude fora tomada por outra unidade que, antecipando-se à ordem de retirada, fez a evacuação em táxis aéreos; e outras ainda, embora permanecessem nos locais superiormente determinados, transformaram-se em centros de propaganda antiportuguesa, afixando nos seus aquartelamentos e imediações cartazes atentatórios da dignidade das Forças Armadas, instigando à entrega imediata e sem condições de Moçambique à FRELIMO. Unidades acabadas de chegar da Metrópole, altamente politizadas, recusaram-se a «entrar em sector» e incitavam as unidades do interior a abandonar as localidades e posições que defendiam, algumas havendo que foram intimadas pela força a render as unidades em final de comissão; os quadros e soldados do Comando de um Batalhão sediado em Vila Paiva de Andrade prenderam o Comandante e ameaçaram abatê-lo se este os obrigasse a sair em serviço operacional antes de o cessar-fogo ser oficialmente anunciado (12). O panorama completava-se com o espectáculo do «desfile» das colunas de viaturas militares, que retiravam dos seus aquartelamentos, com soldados empunhando dísticos impondo o fim da guerra, o regresso imediato à Metrópole e laureando a acção libertadora da FRELIMO.
Em princípios de Julho, iniciava-se a retracção do dispositivo das nossas forças, precisamente na altura em que o Quartel-General de Nampula promovia a difusão de uma circular anunciando que o cessar-fogo seria em breve assinado e proibia a publicação de um telex noticioso da Reuter que divulgava a afirmação de Samora Machel de que «não haveria qualquer cessar-fogo enquanto o Exército Português não fosse completamente derrotado». Era evidente que a FRELIMO não estava interessada, apenas, na independência de Moçambique, mas pretendia, acima de tudo, o poder absoluto do novo Estado, poder que Samora Machel, embora não ignorasse ser bem difícil de obter por referendo e não ter força para o conquistar pelas armas, estava seguro lhe viria a ser oferecido pela via da traição dos elementos marxistas das Forças Armadas Portuguesas.
É assim que o Governador-Geral de Moçambique, em 23 de Julho, informa o Ministro da Coordenação Interterritorial de que as comissões regionais do MFA se haviam reunido em Nampula, «tendo as comissões de Cabo Delgado e de Tete anunciado que as tropas estacionadas nos referidos distritos impunham um cessar-fogo unilateral se até fins de Julho não fosse estabelecido um acordo global de cessar fogo com a FRELIMO, data a partir da qual o pessoal dos helicópteros se recusaria a abastecer as tropas terrestres.»
Na verdade, caminhava-se para um fim trágico. Estavam criadas as condições que conduziriam uma Companhia a entregar-se, sem luta, à FRELIMO em l de Agosto, no desenvolvimento de um plano maquiavelicamente concebido e eficientemente conduzido ao nível do Estado--Maior do Quartel-General de Nampula, então profundamente infiltrado pela esquerda militar revolucionária.
É de notar que isto tudo se desenrolou numa altura em que ainda havia ampla margem para defender à mesa das negociações, com dignidade e justiça, os interesses nacionais, porquanto está hoje comprovado, por declarações insuspeitas dos próprios chefes da FRELIMO, que a força desta era fictícia e só tinha sido possível ampliá-la, em termos de larga dimensão, com a ajuda da autoridade das Forças Armadas Portuguesas, que impuseram os seus inimigos da véspera às populações que afirmavam defender.
Completando este quadro de alta traição a Portugal e às populações de Moçambique, o Major Melo Antunes, então Ministro sem Pasta, deslocou-se, sem meu conhecimento, a Dar-es-Salam para, à margem de qualquer política concertada com a Presidência da República ou com os Ministros dos Negócios Estrangeiros e da Coordenação Interterritorial, estabelecer um plano de entrega de Moçambique à FRELIMO, plano que viria a concretizar-se numa proposta inicial a que ele desde logo aderiu e que representava a abdicação total perante o inimigo por nós próprios tornado poderoso. A aceitação desse documento por um membro do Governo Português retirou às forças políticas as poucas possibilidades que ainda tinham de defender os interesses nacionais.
Assim, quando em 15 e 16 de Agosto, a Delegação Portuguesa (13) se sentou à mesa das negociações em Dar--es-Salam, a facção predominante do MFA, ali representada pelo Major Melo Antunes, já estava ao lado do chamado Movimento de Libertação e, para que ainda se retirassem às forças políticas todas as possibilidades de soluções razoáveis, recorreu-se a formas de pressão impensáveis e só possíveis num quadro de alta traição.
No regresso da delegação a Lisboa, foi-me comunicado que o Major Melo Antunes, na sequência da acção secreta anteriormente realizada, ao chegar a Dar-es-Salam entrara imediatamente em contacto com o Presidente Nyerere e com a delegação da FRELIMO sem conhecimento dos outros membros da delegação portuguesa, certamente com o objectivo de acertar os pontos de vista que defendeu na reunião oficial realizada na tarde do mesmo dia, numa chocante atitude de defesa declarada dos' interesses da FRELIMO em detrimento dos de Portugal.
Na mesma ocasião fui informado de que aquela reunião havia sido aberta com a audição de uma fita gravada da «rendição» de uma companhia metropolitana no Norte de Moçambique, num cenário concertado com as cúpulas marxistas do MFA e conhecido pela «traição de Omar» (14), gravação que ficará a assinalar uma das páginas mais vergonhosas da História do Exército Português ao oferecer a Samora Machel, na mesa das negociações, uma arma decisiva. As afirmações produzidas no «acto da rendição», designadamente as saudações à FRELIMO, como libertadora de Moçambique e do próprio povo português, constituíram prova irrefutável do índice de prostituição moral a que haviam chegado alguns militares portugueses.
Não encobrindo a minha indignação por tudo o que se havia passado na reunião de Dar-es-Salam, recusei-me a ouvir a referida gravação bem como a aceitar que tão vergonhosa «rendição» traduzisse o espírito das Forças Armadas Portuguesas em Moçambique(15). Tomei nessa ocasião conhecimento das exigências da FRELIMO e do projecto de acordo em discussão. Sabia que os entendimentos secretos entre os representantes daquele Movimento e os mandatários da facção dominante do MFA haviam diminuído sensivelmente a nossa capacidade de manobra e de argumentação à mesa das negociações. E também não ignorava que o ultimato do MFA de Moçambique de 23 de Julho, já em parte concretizado com a «rendição de Ornar», se traduzia numa ameaça constante do colapso militar. A FRELIMO estava consciente de que o seu poder residia essencialmente não nas suas .estruturas, mas na força da traição da esquerda militar portuguesa, disposta a apoiá-la e a impô-la ao povo moçambicano, proporcionando-lhe a organização político-militar que nunca conseguira alcançar antes do «25 de Abril».
Apesar destas circunstâncias, neguei-me terminantemente a aceitar algumas cláusulas do texto proposto e sugeri a passagem de outras para um documento reservado anexo ao Acordo, numa derradeira tentativa de salvaguardar perante o Mundo o que ainda restava da Dignidade Nacional. Tinha plena consciência de que era já irreversível o desenvolvimento do processo no sentido de uma transferência de poderes para a FRELIMO, mas queria que esta assumisse as obrigações de modo a que os interesses portugueses e os da população moçambicana fossem devidamente acautelados."
Em entrevista ao PÙBLICO em 11 de Abril de 2004, afirma o Dr. Almeida Santos:
"...Houve uma companhia, no Norte de Moçambique, em Omar, que se entregou. Esse tal telegrama dizia: "Até ao fim do mês." No fim do mês uma companhia entregou-se à Frelimo. E veio outro telegrama a dizer que a companhia tinha sido objecto de uma emboscada, tinha sido involuntário da parte dos nossos. E antes de irmos para Lusaca, para as negociações, o general Spínola disse-me que, como condição de começarmos a discutir, eles tinham de apresentar desculpas pelo que se passou em Omar. Assim fizemos, dissemos: "Temos instruções de não começar a negociar sem vocês justificarem o que se passou em Omar." Eles apresentaram uma cassete que mostrava que tinham sido os nossos que se tinham entregado. Na cassete diziam: "É hoje, peguem lá as nossas armas." ...
“Melo Antunes e Almeida e Costa. E, de facto, acordaram com a Frelimo as bases do futuro acordo. O essencial estava lá: a dispensa da consulta popular, fosse referendária, fosse directa; o reconhecimento da Frelimo como único e legítimo representante do povo de Moçambique; a existência de um governo de transição com a composição assim ou assado - estava basicamente tudo discutido. Portanto, não venham dizer que os culpados sou eu e o dr. Mário Soares, quando depois começamos a discutir, naquela base, em Lusaca. Também eu aí absolvo absolutamente o dr. Mário Soares. Não estou a defender-me a mim, pela razão simples que ele negociou perante situações de facto: primeiro, sem cobertura militar; segundo, com uma negociação prévia em que não tinha intervindo. Ele não teve culpa nenhuma. O acordo de Lusaca, apesar de tudo, é um acordo hábil. Tenho um grande papel na redacção do acordo; os acordos foram praticamente todos redigidos no essencial por mim, mas na prosa, não nas soluções. "
Termino esta pequena série de transcrições com o desabafo final, na entrevista concedida ao Diário de Notícias, em 20 de Abril de 2004, do Alferes Comandante da Companhia que se rendeu em OMAR:
"Ainda hoje", diz José Carlos Monteiro, "estou convencido que a Frelimo precisava de prisioneiros para trocar em Lusaka e não os tinham. Fomos nós"
Ficam aqui algumas pistas para os estudiosos e historiadores sérios se dedicarem mais profundamente a este capítulo da História comum de Moçambique e de Portugal no período pré-independência, com mais de trinta anos já passados.
Como aconteceu e porque aconteceu?
Fernando Gil