Já à venda nas livrarias.
Abel Coelho é Natural de Inhambane-Moçambique.
NOTA DO AUTOR:
Vinte e cinco anos depois da revolução e da independência de Moçambique decidi dar uma volta pelo país e rever lugares de infância. A guerra tinha acabado, o regime de partido único tinha dado lugar ao multipartidarismo e a liberdade de expressão pareceu-me ser uma realidade tão grande quanto a paz que pude testemunhar por todos os caminhos e cidades por onde passei.
Na comitiva de viagem éramos sete: a minha cunhada e o meu irmão que funcionavam como cicerones e nos mostravam sítios que há muito deixara de ver, a minha mãe e o meu pai, para quem quase tudo o que viam lhes trazia recordações do passado, a minha sogra e a minha mulher, sempre dispostas a maravilharem-se com os cantos que fizeram parte da minha meninice e eu, que em cada paisagem, em cada povoação e em cada aldeia, me via menino branco de pé descalço, correndo por ali sem me preocupar com o fim do espaço.
O carro da frente saiu da estrada principal e voltou à direita no que parecia ser uma picada, reconheci-a: - "vai dar a uma velha quinta onde passei parte da minha vida de criança" - digo para a minha mulher. Sinto as memórias desse tempo entrarem por mini à velocidade com que nos aproximámos da quinta. Depois de uma lomba ela aparece ao fundo da estrada: a casa está seca, a tinta desapareceu e as paredes têm rugas como se o tempo as tivessem mirrado: parámos em frente e reparo que as janelas não têm vidros, parece uma casa morta, de pé. A volta está lá tudo, a velha tangerineira está ainda fértil, a laranjeira com enxerto de limoeiro, precisada de poda insistia ainda em manter-se viva no seu canto, o jardim cujas roseiras desapareceram dos canteiros deram lugar agora a tufos de capim seco. O espaço parecia-me mais pequeno mas isso era coisa do tempo, estava tudo em silêncio e não se via ninguém por ali, era como se a quinta tivesse sido abandonada. Em passo lento entrei na casa pelo buraco deixado pela porta que já não existia e no interior, na mesma sala onde passei vários natais, a mobília tinha desaparecido, o chão estava ocupado com cocos secos colocados em montes que iam até a meio da divisão; nos outros quartos a mesma coisa. As paredes estavam cobertas de palavras de ordem escritas a carvão: "viva a revolução", - "independência ou morte venceremos", - "morte aos colonialistas". Eram marcas de um tempo posterior à minha passagem por ali.
Segui o corredor e quando saía pela porta dos fundos que dava acesso à parte de trás, vejo uma mulher negra de rosto familiar mas não a reconheço imediatamente; era velha, muito velha, sofrida e magra como só a falta de alimento nos pode deixar; paro na ombreira e fico à porta a observá-la mas não me vê, está atenta ao grupo que deu a volta à casa e se encaminha para ela. O meu pai pára em frente a menos de um metro dela, olham um para o outro como se de uma visão se tratasse e ficam assim, por um momento; quase sem controle ele deixa escapar: - "Josefa" - dos olhos da velha correm lágrimas, mantém-se estática e só os lábios se movem para dizer: "Olha o que fizeram da nossa terra Martins...olha o que fizeram da nossa vida..." Abraçaram-se e, foi a segunda vez na vida que vi o meu pai chorar.
Vêm-me à mente os tempos da revolução, o medo de ser branco, o medo de falar, o medo de não falar, o tempo da ditadura e dos amigos presos.
Está tudo diferente agora para melhor, as coisas estão no bom caminho, o multipartidarismo, o fim da guerra civil, a liberdade de expressão e a vontade dos políticos da nova geração em fazerem melhor são sinais de esperança, mas para trás fica uma geração sofrida, perdida talvez, e a quem ninguém ainda pediu perdão pêlos males feitos em nome de verdades absolutas.
A voz fraca da "Josefa" soa-me como um grito de quem implora por justiça e, diante dele, é difícil olhar para o futuro sem nos lembrarmos do passado.
OS ELEFANTES NÃO ESQUECEM é isso, uma história do passado, onde tudo o que for igual é pura coincidência, como coincidência é o nome das pessoas, dos lugares, dos actos e das atitudes.
Não pretendo com o tema desenterrar ódios, mas já é tempo de libertarmos o que nos vai na alma, de assumirmos esse passado, de assumirmos que houve sofredores e carrascos num tempo ido, num tempo que, felizmente, já faz parte da nossa história.
Abel Coelho