Em 5 de Março de 2005, os prisioneiros de Ornar, alguns acompanhados de suas esposas e filhos, pela primeira vez reuniram em convívio, em Leiria.
Compareceu uma delegação da nossa associação, presidida pelo Vice-Presidente Eng.° Neto, que em comissão imediatamente anterior serviu como furriel em Ornar.
Combinámos entrevistar o antigo alferes miliciano José Carlos Monteiro que comandava interinamente a Companhia no dia 1 de Agosto de 1974.
O entrevistado, depois do serviço militar, fez a sua carreira Profissional nos correios, onde é hoje responsável de zona.
VC- Qual a denominação local de estacionamento Batalhão e tempo de permanência da sua Companhia em Omar? Caracterize operacionalmente a zona nessa época?
AM- 1a Companhia de Cavalaria Batalhão 8421 Base de Omar Província de Cabo Delgado.
Estacionada nesta Unidade de 18.08.1973 a1.08.1974.
Zona 100% operacional, cuja missão era impedir a entrada e saída da Frelimo para a Tanzânia e impedir os reabastecimentos que eram efectuados via Rio Rovuma.
VC – Quais as bases de guerrilha da Frelimo que existiam na
área de actuação da Companhia?
AM - Havia a base Limpopo e outras pequenas bases avançadas que serviam de passagem para esta base.
VC – Como foi acolhida a notícia da ocorrência do 25 de Abril em Portugal? A vossa actividade operacional continuou ou houve alterações?
AM - A guerra entre o Exército Português e a Frelimo é apresentada como a principal premissa no contexto do Movimento das Forças Armadas. Iniciam-se conversações no sentido de acabar com um confronto entre dois povos. Trabalha-se para um cessar fogo em Moçambique, objectivo para o qual o Exército Português imediatamente caminhou, deixando de efectuar operações de carácter ofensivo e acordando em restabelecer diálogos a nível local, com elementos da Frelimo. As emissoras de rádio, de Moçambique, frequentemente anunciavam ostensivamente esses contactos. Houve inicialmente urna fase em que o cepticismo e a vontade de alcançar objectivos mais complexos levaram a Frelimo a não compreender claramente a boa vontade e o espírito colaborador do Exército Português. Passados algumas semanas, porém, o endurecimento iluminou as forças emancipalistas moçambicanas, altura a partir da qual se começou definitivamente a caminhar para a paz.
V C - Recebeu algumas instruções para entabular negociações de cessar fogo com a Frelimo? De quem?
AM - A mensagem 2008/OI/74 do Comando Sector B transcreve a mensagem 71 65/P da 5a Repartição: «... Devem todos os comandos tentar criar condições locais passíveis de conduzir ao cessar fogo na sua ZA. Para o efeito lançarão campanha de panfletos, cartas deixadas no mato, e acima de tudo servir-se como intermediários, bem como todos os meios achados convenientes. Só deve ser prometido respeito e confiança mútuos e desejo para a paz. Todos os militares serão esclarecidos destes acontecimentos e finalidades, tendo em vista evitar quaisquer incidentes ou atitudes inconvenientes e todos os resultados alcançados serão comunicados a este Comando...»
Dentro do mesmo espírito e baseado nesta mensagem, o Comando Militar de Mocímboa do Rovuma elaborou um comunicado, com o fim de ser distribuído durante os patrulhamentos efectuados por forças do BCAV 8421:
- «O Governo Provisório Português está seguindo uma política ditada pelo Movimento das Forças Armadas que visa o seguinte: a paz entre os portugueses de todas as raças e credos em Moçambique e restantes províncias ultramarinas; Conceder a independência a Moçambique a curto prazo, bem como nas restantes províncias ultramarinas... Todos sabemos que a Frelimo e as Forças Armadas Portuguesas têm forças para continuar a lutar por muitos anos, porém, agora é imoral e desumano continuar a fazer mais mortos e feridos de ambas os partes. Os nossos Presidentes já começaram o diálogo franco e aberto, que vai continuar, e só este poderá conduzir a paz que todos desejamos. As Forças Armadas estão dispostas a não atacar o povo da Frelimo, se esta não atacar as picadas e quartéis portugueses. Vamos cessar fogo em conjunto, aguardando que na mesa das negociações seja negociada a paz com vista à independência de Moçambique. Enquanto não houver paz, as Forças Armadas continuam em Moçambique para segurança de todas as populações, raças e credos. Só em paz será possível construir um Moçambique melhor.
Aguardamos a vossa resposta por escrito ou emissário que será bem recebido».
VC - Descreva-nos os acontecimentos de Ornar a 1 de Agosto de 1974 e todos os posteriores até à data da vossa libertação em 19.09.1974.
AM - Na madrugada do dia 1 de Agosto de 1974, na orla da mata do estacionamento ouviram-se vozes de megafone, dizendo: « Atenção aquartelamento de Omar, nós não estamos contra vocês, lutamos contra o fascismo e o colonialismo, e esses terminaram no dia 25 de Abril. Queremos falar com vocês. Mandem um mensageiro à pista, pois nós estamos sem armas. Queremos apenas falar convosco, não queremos mais derramamento de sangue».
Perante estas palavras o soldado Joaquim da Silva Piedade ofereceu-se voluntário para ir à pista como mensageiro. Todo o restante pessoal continuou nas valas e em diversas posições de fogo. Quando o referido mensageiro ia a chegar à pista, novas vozes de megafone se ouviram, pedindo para que o Comandante viesse também à pista. Perante isto, o comandante do aquartelamento, alferes miliciano José Carlos da Silva e Costa Monteiro, acedeu em ir também à pista juntamente com o referido soldado Piedade.
Surgiram então cerca de 8 a 10 indivíduos desarmados, munidos com gravadores portáteis, máquinas de filmar e máquinas fotográficas. Quando o alferes Monteiro se encontrava a falar com o comandante deste pequena força ele repetiu as palavras já ditas pelo megafone e pedia para falar com os soldados da Companhia na pista. Perante esta insistência o comandante do aquartelamento de Omar alvitrou que poderia entrar e falar com a Companhia dentro do aquartelamento, o que lhe foi contestado, alegando medo de qualquer reacção das nossas tropas ou da força aérea.
Perante isto, e como não se notava qualquer presença de indivíduos armados, foi aceite que parte Companhia fosse para a pista. Ficaram nas posições as secções de obuses 8,8 morteiros e postos de sentinela.
Quando se encontravam na pista, houve uma força de cerca de 100 indivíduos, que pela porta de armas traseira, que dava saída para a lixeira, entraram de assalto, tomando as nossas posições dentro do quartel. A reacção das secções de obus não era possível, e como tal, a força que entrou obrigou o pessoal das restantes posições a abandonar e sair. No mesmo momento em que a força toma o quartel, há uma outra força emboscada na orla da mata da pista que cerca todo o pessoal que nela se encontrava.
A partir daí não foi possível qualquer reacção. Imediatamente o Comandante de Omar e outros graduados perguntam ao comandante da força invasora o que é que se passava, no que ele respondeu que iriam falar com o Comandante Joaquim Chipande no meio da mata. Foram levados para uma base avançada de Frelimo onde se encontraram com os Chefes Silésio e Alberto Joaquim Chipande. Aí pernoitaram, dormindo à volta duma fogueira.
No dia 2 iniciaram a marcha até nova base da Frelimo onde ficaram dois dias. Aí os graduados tiveram a primeira reunião com uma comitiva da Frelimo chefiada por Joaquim Chipande. Foi-lhes lido todas as conversações de Lusaca às quais Chipande havia estado presente. Explicou este Chefe que uma das razões porque tinham tomado OMAR era pelo facto de não só ser uma base de importância vital, mas também porque já haviam escrito uma carta ao Comandante do Sector B/AV (Mueda) Tenente Coronel Andrade Lopes, onde a Frelimo punha como condições a retirada de determinados quartéis e reunião dos mesmos em Mueda. Não o quiseram fazer e a Frelimo sabia, pelo barulho de rebentamentos e por um mainato civil, que fugiu da nossa Companhia, que Omar estava a destruir os materiais. Esta reunião terminou cerca das 10H00 e aí os graduados iniciaram a marcha para se irem juntar aos restantes soldados que já se encontravam numa outra base da Frelimo.
No dia 5, seguiram para o distrito de M’Napa onde pernoitaram.
No dia 6 seguiram com destino à base Limpopo, onde foi distribuído arroz e sopa aos militares. Daqui avançaram em direcção ao Rio Rovuma, onde chegaram cerca das 18H00. às 00H30, os últimos homens encontravam-se em território da Tanzaniano.
No dia 7, foi distribuído o fardamento da Frelimo a todos os militares portugueses, tendo estes entregue a roupa que levavam vestida. À tarde, iniciou-se o transporte de todo o pessoal em viaturas do exército tanzaniano para Newala, onde se pernoitou numa prisão em construção.
No dia 8, dá-se o primeiro encontro com o Presidente da Frelimo, Samora Machel, bem como a restante comitiva. Aí, Machel falou a todos os militares, tendo cumprimentado todos um por um. Nessa tarde seguiram ao longo da Tanzânia até Nashinguwea onde ficaram instalados num quartel do exército tanzaniano. Aí ficaram até à libertação que se processou em 19.09.1974.
Enquanto permaneceram como prisioneiros, não houve qualquer mau trato a ninguém. Funcionava uma enfermaria dia e noite, com um sargento enfermeiro da Tanzânia, pronto para qualquer serviço. Um médico da Frelimo ia frequentemente dar consultas a quem queria, tendo feito inclusivamente o tratamento de uma anemia, com transfusão de sangue, a um soldado artilheiro português. Receberam diversas visitas, entre elas, a de Samora Machel três vezes, Chefe do Estado Maior do Exército Tanzaniano, Ministro da Agricultura da Tanzânia, diversos dirigentes do partido Tanu, muitos jornalistas e fotógrafos.
VC – Li algures que Spínola, então Presidente da República, terá visto uma reportagem da rendição de Omar e se terá declarado muito incomodado. Entende que poderia ter tido outro comportamento? Estás arrependido das suas decisões?
AM – O General Spínola deve ter ficado incomodado foi por ter dado determinadas ordens ao Major Otelo e ao Dr. Mário Soares para as conversações de Lusaca e eles terem alterado tudo o que havia sido combinado!!! Todas as reportagens foram feitas sobre Omar não correspondem à verdade, pois os actores principais nunca foram ouvidos, e ao fim de 31 anos é a segunda vez que conto a verdadeira história.
VC – Que influência terão tido os acontecimentos de Omar nas conversações de Lusaca, já que o acordo foi assinado mais de que um mês depois, a 09.09.1974?
AM – Pode ter servido para haver moeda de troca em termos de prisioneiros, pois só nós e um pelotão de açoreanos é que estávamos vivos e visíveis para a comunicação social. Onde estão os homens do navio Angoche?
VC - O Sr, era o Comandante Interino da Companhia. Alguma vez a hierarquia militar ou o poder político o incomodaram ou molestaram pela responsabilidade dos acontecimentos?
AM – Não.
VC - Quando foram libertados e após o regresso a Moçambique, como foram tratados pelos comandos militares. Quem vos recebeu e o que vos disseram? Que apoio receberam?
AM – Fomos recebidos em Nampula pelo Coronel Travassos, na altura Comandante do Sector B. Fomos bem recebidos e dados novos fardamentos e dinheiro.
VC – Trinta e um anos depois dos acontecimentos, o que sente? Em relação aos subordinados, aos superiores e aos guerrilheiros da Frelimo?
AM – Relativamente aos acontecimentos, não tenho qualquer ideia definida, tão somente a satisfação por ter regressado a Portugal com todos os meus homens, sãos e salvos, e creio termos tido um comportamento digno, pois soubemos dignificar a missão para a qual fomos solicitados: saber fazer a paz é tão dignificante como ganhar uma guerra.
Veja:
http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2005/08/1_de_agosto_de__2.html