TESTEMUNHOS DA MEMÓRIA
Sérgio Vieira
O Partido pediu-me que iniciasse uma crónica regular. Sempre recusei escrever memórias, porque de um modo ou doutro o autor só possui uma parte limitada do todo e, igualmente, há que o reconhecer, tendemos por razões justas ou injustas a calar certos factos e a enaltecer outros.
Lamento, porém, que muitos escritos que surgem sobre a nossa História mais recente estejam repletos de inverdades, quantas vezes deliberadas e com o intuito de nos impor uma revisão adulterada do acontecido.
Muitos camaradas estão ainda e felizmente vivos, bibliotecas verdadeiras. Naquilo que de errado ou incompleto, involuntariamente, escreverei, eles poderão sempre contribuir, corrigindo, acrescentando. Para isso também serve esta publicação do nosso Partido. Optei, assim, por escrever o que chamo “Testemunhos da Memória”. Bosquejos daquilo que vivi, sem dispor nem da documentação, nem do tempo necessário para uma verdadeira investigação escolhi a solução mais fácil e porque não, preguiçosa.
Começo pelo ano da minha fuga.
Antes, no seio da Casa dos Estudantes do Império – CEI —, ali na Duque de Ávila em Lisboa, eu e muitos outros nos iniciámos numa actividade política mais orientada, onde com confiança, dialogávamos e aprendíamos dos mais experimentados.
Marcello Caetano, quando ainda Ministro das Colónias, nos anos 40, criara a instituição, no intuito de enquadrar e apoiar, essencialmente, os filhos dos colonos. Aconteceu, porém, que uma primeira geração, digamos assim, de angolanos, cabo verdianos, guineenses (B), moçambicanos e s.tomenses se apossaram, progressivamente da CEI. Entre eles, e que me perdoem por omitir outros, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Mário António, Gualter Soares, Eduardo Mondlane, Francisco José Tenreiro, Tomás Medeiros, João Mendes, os irmãos Dáskalos.
Quando entrei na CEI o Fernando Vaz a presidia. Quando o Governo a mandou dissolver, o Óscar Monteiro a dirigia.
Pelo percurso numerosas comissões administrativas nos foram impostas no intuito de nos quebrar.
A sessão de 1960 da Assembleia Geral das Nações Unidas que aprovara a célebre Resolução 1514 (XV), que os nossos alunos deviam conhecer, marcara um novo impulso na luta contra o colonialismo. A independência do Congo (K), a conspiração para destruir o país e salvaguardar os interesses sórdidos das grandes companhias mineiras, o assassinato de Lumumba tocara-nos profundamente. Antes, a capitulação francesa em Dien Bien Phu, o começo da insurreição argelina, a nacionalização do canal do Suez por Nasser, a independência do Ghana e da Guiné haviam-nos estimulado profundamente.
A minha geração situa-se neste contexto.
O ano de 1961 assinala uma viragem maior na história do colonial-fascismo português e no avanço da causa da libertação.
Sob a direcção do Capitão Henrique Galvão, opositor ferrenho de Salazar, o ano iniciou-se com o sequestro do paquete Santa Maria, baptizado durante a operação de Santa Liberdade. Galvão e os seus companheiros são acolhidos em triunfo, no Brasil de Jânio Quadros.
Curiosamente, a PIDE escolhe um seu informador, grumete ou moço de limpeza a bordo, oriundo da Beira, Janeiro da Fonseca, para içar o pavilhão português no barco, quando o Governo retoma o seu controlo.
Este Artur Janeiro da Fonseca fingiu fugir de Portugal para o Marrocos em 1963. Em Rabat foi recebido na CONCP e contou várias histórias bem mal contadas. O camarada Amílcar Cabral decidiu ouvi-lo na minha presença. Contou, de novo, as diversas historietas e, mencionou diversos nomes para corroborar o que narrava. Ignorando com quem estava a falar, citou os nomes de Amílcar Cabral e o meu.
No final da conversa o camarada Amílcar apresentou-se e apresentou-me, imagine-se comoficou o senhor. Vários anos depois instalou-se na RFA onde veio a representar a RENAMO, parece que até hoje está ligado a essa organização.
A 4 de Fevereiro militantes do MPLA atacam, em Luanda, prisões e outros objectivos de natureza militar. A 15 de Março a UPA desencadeia acções armadas contra variados alvos, sobretudo empresas agrícolas coloniais dedicadas ao café, no Norte de Angola.
Pouco depois os Altos Comandos militares portugueses tentam forçar a saída de Salazar do Governo, de modo a prepararem uma solução negociada e pacífica do fim do colonialismo. (Cont. na próxima Edição)
In Boletim Informativo do Partido FRELIMO – 16.09.2005