CARLOS PACHECO*
Regozijo-me com o facto de a ideologia do Governo angolano ter mudado
e já não haver temores com o "perigo amarelo". Seria infantilismo, e
até um retrocesso, fazer deste preconceito política de Estado. A
penetração do capital chinês e a vaga de emigrantes que a acompanha,
em pouco tempo trará vantagens internas não difíceis de quantificar.
Recordo-me de há vinte anos ter conversado em Luanda com algumas
pessoas da elite política do MPLA e roçar com elas pontos de vista
sobre o futuro de Angola. Se a possibilidade de isto acontecer era
rara naquele tempo, o certo é que a experiência acabou por ser
estimulante porque, salvo um ou outro embaraço, senti da parte
daquelas pessoas a necessidade de falar sem inibições. O encontro
decorreu a sós com cada uma delas. Uma das questões que guardo na
memória, talvez por ter sido a mais instigante, e à qual os meus
interlocutores responderam com visível dificuldade, foi esta: "como
se pensava conciliar o desenvolvimento nacional num território que,
sendo dos mais vastos de África, é ao mesmo tempo escassamente
povoado?".
As respostas, como é de imaginar, variaram desde a dúvida com relação
às políticas a implementar [um respondeu que o Governo iria procurar
incentivar a natalidade, premiando os casais com mais filhos] até à
constatação de que, enquanto não se chegasse ao termo da guerra, o
crescimento populacional estaria comprometido. A própria fecundidade
da mulher africana, depois disso, se encarregaria de restabelecer os
parâmetros de equilíbrio.
A isto contrapus o argumento de que a recuperação demográfica, além
de levar muitos anos, depende sobretudo das condições sócio-
económicas das populações. Citei os índices de crescimento
demográfico editados pelas Nações Unidas e mostrei que as
perspectivas estavam longe de ser animadoras. Angola iria registar um
crescimento constante nas próximas décadas, porém nada de
exponencial, pois os percentuais estariam sempre abaixo das suas
necessidades globais.
A quebra nas taxas de fertilidade das mulheres seria um dos factores
a ter em conta. "Então, que outras alternativas restam?", perguntaram-
me. Apontei que uma das soluções mais expeditas, a breve prazo, seria
abrir as portas do país à imigração estrangeira [à semelhança do que
fizeram os países latino-americanos, e até os Estados Unidos, na 2."
metade do século XIX] como forma de suprir a falta de braços em todos
os ramos de actividade, em particular na lavoura.
E avancei com o exemplo da China, com uma população acima de mil
milhões de pessoas e com problemas de pobreza nas cidades e em áreas
rurais, e que me parecia ser a nação melhor colocada para ajudar
Angola, sem esquecer o seu apoio dado no passado às revoluções no
Terceiro Mundo e às nações emergentes, o que, em suma, lhe conferia
credenciais de respeito.
Devo confessar que os meus interlocutores, sem excepção, reagiram
enervados a esta proposta. Taxaram-na de extravagante e até perigosa,
por entenderem que a "invasão amarela" de Angola [como tiveram o
cuidado de sublinhar] significaria o fim da raça negra no
país. "Angola tem de crescer [retrucaram eles], mas amparada
essencialmente na sua mão-de-obra nativa". Malgrado os meus esforços
para tentar convencê-los de que o desafio do desenvolvimento era [e
é] indissociável das premissas que expus, eles mantiveram-se
inflexíveis nas suas teses.
Hoje é enorme a minha surpresa quando vejo a China a investir
gigantescos recursos financeiros em Angola, a comprar petróleo e gás
[é o segundo maior cliente depois dos EUA], a reabilitar infra-
estruturas e vias de comunicação pela mão das suas empresas; a
investir no sector da Saúde, a preparar-se para realizar
investimentos na produção de hidrocarbonetos e no parque industrial;
e ainda a financiar créditos para a construção de novas instalações
militares.
Na realidade, estou surpreendido com a amplitude desta cooperação,
sendo sabido que os planos avançam rapidamente. Todavia, o meu maior
assombro é ver, cada dia que passa, a população chinesa a aumentar,
estimando-se que o contingente nos próximos anos atinja a cifra de
quatro milhões. Uma boa parte destes indivíduos com certeza irá fixar-
se nos campos a fim de ter um papel decisivo na recuperação da
agricultura e da pecuária. É natural que o país, com tantas bocas
para alimentar depois da injecção de novos habitantes, necessite de
ser autónomo em matéria alimentar.
Diante deste novo quadro regozijo-me com o facto de a ideologia do
Governo ter mudado e já não haver temores com o "perigo amarelo".
Seria infantilismo, e até um retrocesso, fazer deste preconceito
política de Estado. A penetração do capital chinês e a vaga de
emigrantes que a acompanha, em pouco tempo trará vantagens internas
não difíceis de quantificar.
Uma das vantagens, a mais sensível na minha opinião, são os bons
hábitos de trabalho. Os angolanos têm muito que aprender com os
chineses e com as suas milenares regras de disciplina e respeito às
hierarquias superiores. Jamais simpatizei com os cubanos, sempre se
me afiguraram um bando indisciplinado e arruaceiro, mesmo descontando
o facto de terem estado em Angola simplesmente como guarda pretoriana
do Poder político.
Entretanto, vão-me chegando notícias de que os empresários da terra
denotam insatisfação com a abertura do mercado nacional aos chineses.
Vieram prejudicar-lhes os negócios, eis o que se diz, com os seus
produtos baratíssimos e altamente competitivos.
Descontentamento análogo se faz sentir da parte de empresas
portuguesas que nunca esconderam a sua avidez de lucros obtidos muito
acima do razoável. O mito de Angola como árvore das patacas continua
cristalizado na mente desses grupos que agora se vêem tolhidos de
competir à altura com o volume de investimentos chineses e com os
custos por eles oferecidos na execução de empreitadas; sobretudo num
domínio que passava por ser monopólio lusitano, o da construção
civil.
Se desde já é possível arriscar um vaticínio, diria que com estes
abanões provocados pelos chineses às classes empresariais, no seu
todo, quer a nativa, quer a estrangeira, vão ser obrigadas a rever
depressa - se quiserem sobreviver - métodos de trabalho viciados que
duraram enquanto a situação em regime de monopólio as favoreceu. Para
isso terão de apostar em novos padrões de exigência, de produtividade, de sofisticação de produtos e, especialmente, em preços mais baixos.
Correm igualmente rumores que a China está a despejar em Angola
indivíduos desclassificados ou condenados em processo judicial [tal
como aconteceu num passado remoto com degredados portugueses], os
quais hipoteticamente poderão vir a causar ao país mais turbulências
sociais. Verdade ou não, uma coisa é certa: nenhum deles saiu [ou
sai] do país de origem desenquadrado [porque lá funcionam
compulsivamente como força de trabalho] e, postos em África, é
presumível que os órgãos de vigilância chineses os continuem a ter
sob fortes tenazes de disciplina e controlo.
A China enfrenta neste momento uma espiral de crescente
descontentamento social, que se alastra às zonas rurais. O número de
incidentes repete-se todos os anos, são milhares os aldeões
envolvidos em batalhas campais com a polícia anti-motim, donde têm
resultado sangrentas repressões. Até dentro das Forças Armadas se
assiste a actos de inconformismo por tanta brutalidade. Estou em
crer, portanto, que as autoridades chinesas estão a procurar aliviar
esta pressão despachando os rebeldes para as Costas africanas.
*HISTORIADOR ANGOLANO
PÚBLICO - 05.09.2005