CARLOS PACHECO*
Foi com alguma perplexidade que li os comentários do jornalista Acácio Barradas à 1ª "parte do meu artigo sobre os "Chineses em Angola". Mesmo conhecendo de longa data a sua sensibilidade, espírito de seriedade e compromisso com a verdade, diria que algumas premissas por ele colocadas para refutar o meu pensamento são de todo deslocadas por não corresponderem ao fulcro da minha exposição.
Não entendo que mal possa haver de eu me regozijar com a intensa cooperação bilateral estabelecida entre Angola e a China que, sendo estratégica e de longo prazo para ambos os países, começa já a proporcionar ganhos substanciais aparte africana. A China é de uma grande importância para Angola com o seu imenso fluxo de capitais, a sua tecnologia, os seus conhecimentos práticos e a sua mão-de-obra.
Neste momento o dragão asiático já está a comparticipar em sectores-chave do processo produtivo, logo me parece inegável que Angola a médio ou longo prazo possa vir a recuperar do seu atraso e pobreza.
Tudo vai depender decisivamente da competência e talento dos governantes angolanos.
Acácio Barradas começa por se escandalizar com o elogio que faço à China enquanto nação de trabalho e disciplina. E mais se escandaliza por eu referir que os angolanos podem aproveitar o exemplo chinês de respeito às hierarquias superiores. Do seu ponto de vista esta cultura [que ele diaboliza] identifica-se com uma ética de força impensável em sistemas democráticos e, assim, sugeri-la aos angolanos
é aberrante.
Cabe aqui uma advertência: Acácio Barradas confunde respeito com submissão [é ele que utiliza este último vocábulo], além de esquecer as diferenças de sensibilidade que separam a China do Ocidente. Já André Malraux na sua Tentação do Ocidente apontava as singularidades da alma chinesa que escapam à percepção e entendimento dos europeus e americanos.
Se o individualismo é a marca da civilização ocidental e integra todo o seu ordenamento social e psicológico, nos chineses, pelo contrário, é a ideia de uma existência colectiva que molda a conduta e a moral das pessoas. O respeito às chefias fixa-se menos na autoridade do que
nas qualidades de quem o inspira e perder esta reserva de confiança pode, por vezes, levar ao suicídio. Este paradigma ultrapassa qualquer finitude ou acontecimento transitório. Nem mesmo a rebelião de Tiananmen o desmente, porque quando muito o que ela pôs a descoberto foi uma sede de justiça virada contra os abusos cometidos pelo Poder político.
De qualquer modo, o sistema social chinês alimenta-se destes valores perenes esculpidos pelo taoísmo e pelo budismo e é com eles que a juventude continua a identificar-se. Malraux lembrava, e bem, que no Ocidente "a febre de poderio com que se enfeitam as grandes individualidades impressiona-nos mais do que os seus actos".
Estou ciente que as relações de trabalho na China estão impregnadas de práticas indesejáveis, como a obrigação dos trabalhadores nas fábricas alinharem diante das máquinas antes de iniciarem a jornada laboral. Tratando-se de um resquício da Revolução Cultural, os angolanos não têm que copiar este e outros modelos de burocratismo e sim adoptar o que realmente seja bom para o seu progresso e desenvolvimento.
Outra questão que indignou Acácio Barradas foi eu não me mostrar chocado com o "procedimento despótico" [é uma expressão sua] das autoridades chinesas para com uma certa força de trabalho que, segundo consta, tem sido"desterrada" para Angola. Inclusive acusa-me de complacência com a ditadura de Pequim.
Esta imputação é injusta e não tem qualquer razão de ser: primeiro, porque me limito a fazer a constatação de fenómenos sem entrar em juízos de valor; segundo, se for verdade que se estão a despachar para a África indivíduos desclassificados ou condenados em processo judicial, eu simplesmente reputo essa gente incapaz de criar problemas em solo angolano; pela simples razão de que a possibilidade de fuga e actos à margem da lei sequer se coloca, uma vez que tais indivíduos irão permanecer sob rigorosas medidas de vigilância, quer dos serviços de segurança chineses, quer das estruturas policiais angolanas.
Acácio Barradas, ao apontar a natureza ditatorial do regime político chinês, censura a minha omissão nesta matéria. Não se tratou de omissão. As coordenadas da minha análise é que foram outras. Para compreender o que se está a passar com a presença chinesa em Angola não posso confinar a história dentro de espartilhos ideológicos, como o faz Acácio Barradas, nem satanizar o sistema político da nação asiática.
O Governo de Angola tem desta política de cooperação todas as ferramentas e é a ele, portanto, que compete acautelar os interesses do Estado angolano, mesmo em relação a essa mão-de-obra que Acácio Barradas excessivamente classifica de escrava. Eu reafirmo que ela é bem-vinda por representar um motor para Angola. Até os "facinorosos e ladrões" [permito-me algum humor] devem, na medida do possível, ser aproveitados porque é o trabalho que os vai regenerar. Quantos e quantos indivíduos tidos por criminosos na Europa do antanho não foram colonizar o Novo Mundo e lá se revelaram notáveis empreendedores?
Por muito que custe a certas ideologias os alicerces da nova Angola já estão lançados; e esses alicerces passarão também pela amálgama desses forâneos com os filhos da terra e pela formação de uma nova mestiçagem. Angola, e a África em geral, precisam abrir-se ao mundo sob o risco de perecerem.
*HISTORIADOR ANGOLANO
PUBLICO - 26.9.05
Veja:
http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2005/09/chineses_em_ang.html