Rafael Marques
Ao ver aquela figura diante de si, Sofia Kassumua desmaiou duas vezes. À última queda não conseguiu pôr-se de pé. O seu filho Alberto Mbande reaparecera, por acaso, na sua terra natal, a comuna de Tchivaulo, passados 33 anos.
Em 1972, com 15 anos, Alberto Mbande juntou-se à guerrilha levado por um tio. Desde então, a família julgara-o morto. No reencontro com a mãe, o antigo guerrilheiro, emocionado, não conseguiu esboçar uma palavra. Abraçou os seus quatro irmãos menores pela primeira vez.
Tchivaulo, situado a 45 km a oeste do município do Andulo (província do Bié), está em vias de se tornar em mais um ponto de referência do garimpo de diamantes em Angola e do paradoxo entre a riqueza natural e a miséria humana.
Alberto Mbande regressou 33 anos depois, como motorista, apoiando o trabalho de investigação jornalística sobre o garimpo no Bié. Não imaginava que a ilusão de riqueza, causada pelos diamantes, alguma vez o reuniria à sua família.
O centro do país e da guerra
A província do Bié, no planalto central, foi das que mais sofreu com os horrores da guerra. Disputada pelo seu valor simbólico, do ponto de vista étnico e político. Terra de Savimbi e, durante algum tempo, transformada [o Andulo] – a par do Bailundo – em capital política do mato angolano.
O Kuito, a capital do Bié, continua a ser a mais viva memória da guerra em Angola, passados três anos do seu termo. A cidade permanece um fantasma de escombros, com excepção do vistoso palácio cor-de-rosa, onde habita o governador. A área de trabalho da autoridade provincial e alguns bancos quebram o cenário de abandono total. Nem sequer as almas encontram conforto na casa de Deus. Da Sé do Kuito restam a torre do campanário e três paredes.
Enquanto nessa cidade se ergueu o cemitério-monumento, avaliado em seis milhões de dólares, para dar sepultura às vítimas dos confrontos na cidade, no Tchivaulo, a cerca de 175 km, uma extensa área encontra-se referenciada por pontos brancos. Caveiras e restos de esqueletos humanos. Recentemente, segundo depoimentos locais, as autoridades provinciais ordenaram aos sobas a remoção dos crânios que por aí abundavam. Assim se fez, tanto quanto possível.
Logo após o fim da guerra, em 2002, o governo atarefou-se a solicitar uma conferência de doadores para a reconstrução do país. Esse encontro ainda não teve lugar e essa poderá ser a justificação para manter o Bié, assim como outras partes do país, entregue às trevas.
Mas, como entender que uma província tão disputada, pela importância já referida, e com um potencial tão grande em recursos diamantíferos, seja concedida como prémio ao garimpo institucional e informal?
Senão vejamos.
A 22 de Agosto passado, a administração do Tchivaulo, respectivas autoridades tradicionais e policiais realizaram uma cerimónia formal de inauguração da zona de garimpo do Cambango, na margem do Rio Tchicala. O acto contou com o sacrifício de um cabrito...
“A exploração de diamantes na área começou em Julho, mas só agora chegamos a um entendimento”, explicou um dos garimpeiros presentes na cerimónia e sob a capa do anonimato. “Nós, os garimpeiros, dividimos o cascalho a meias com a administração e o Comando da Polícia Nacional e estes, por sua vez, também repartem a nível municipal”, esclareceu.
Centenas de jovens, oriundos de várias partes de Angola, encontram-se a trabalhar na área. Contam com satisfação e ingenuidade como, também, concordaram com a atitude da administração para a expulsão dos estrangeiros da área de garimpo. Apesar desse entendimento, todo o processo de compra de diamantes no Bié é controlado por estrangeiros licenciados ou não pela Ascorp e Sodiam/LKI.
Ingenuidade e ignorância animam os garimpeiros. A 4 de Agosto de 2004, na área de garimpo de Catacala, na margem do Rio Mbueto, município de Nharea, o jovem Gaby encontrou uma pedra de 60 carats. Vendeu-a por 35 mil dólares.
“Logo que a Ascorp soube do negócio, mobilizou duas viaturas com agentes da Polícia Nacional e soldados das FAA e cercou a minha casa e a de outros garimpeiros”, contou o comprador. “Quem nos denunciou à Ascorp foi um comprador do Congo Democrático, que tinha visto a pedra, e dirigiu a operação mostrando as nossas casas”, prosseguiu.
Segundo o garimpeiro, “o homem da Ascorp ameaçou queimar as nossas casas caso a pedra não aparecesse. Demos-lhes uma de 21 carats, mas eles recusaram, queriam a pedra grande. Tivemos de fugir para as matas durante dois dias. Por causa do sofrimento, fomos obrigados a negociar com eles, mesmo na mata, e pagaram-nos apenas mais mil dólares [US$36,000] pela pedra, quando esta valia acima de 50.000 dólares .
Numa prática que fomenta a evasão fiscal e outros crimes, tanto a Ascorp como a Sodiam/LKI, apesar de serem legais, continuam a fazer negócios sem registo de transacções. “Aqui não existe fatura. Entreguei a pedra e recebi o dinheiro. Pronto”, disse o vendedor.
“As pessoas têm medo de vender diamantes à Ascorp e à Sodiam/LKI porque se forem pedras grandes essas mesmas pessoas podem desaparecer”, denunciou António Kandanda. Para o referido garimpeiro, essas empresas “praticam preços injustos e estão sempre a ameaçar-nos. Preferimos vender aos libaneses, portugueses, senegaleses e outros estrangeiros que andam por aí dispersos”.
Essas companhias investem nada a nível local. Improvisam uns postos de compra em casas de adobe e chapas de zinco, rebocadas e pintadas para conformar com os egos dos seus gestores, como Kaskito “grande comprador de diamantes”, em Seteca. Na Lúbia, o Boss Aruna, da Ascorp, revê-se através do anúncio nas paredes brancas do seu posto de compra de diamantes – “O homem mais forte do Bié”. A escassos metros, o administrador local, staff e alguns agentes policiais consomem o seu tempo num jango improvisado.
As várias pontes que dão acesso a essas localidades são, na prática, o remanescente da antiga “engenharia militar da UNITA”, improvisos de troncos.
Anarquia total
Às noites, a principal via da aldeia de Seteca é toda iluminada por geradores e animada por música congolesa, tocada em várias barracas. É uma autêntica farra, com tendas improvisadas para exibição de filmes, negócios da China, prostituição e alcoolismo à solta. Em Seteca, as cabanas e palhotas têm parabólicas e albergam gentes de todo o mundo. Europeus, árabes, africanos e alguns sul-americanos por aí circulam donos e senhores de uma terra desgovernada. Milhares de garimpeiros montaram acampamento na área, que se estende até à Lúbia e ao Songue, a mais de quatro horas de automóvel.
A 8 de Agosto, Seteca estremeceu.
“O meu amigo Gaby encontrou uma pedra de 12.5 carats. A Sra. São, a patrocinadora, chamou o seu amigo da Polícia Nacional para confiscar a pedra.
“Seis agentes da Polícia Nacional apanharam-me, ao meu xará e ao Gaby. Amarraram-nos pelos cotovelos e levaram-nos para o Posto Policial de Seteca. Lá sovaram-nos durante a noite com pontapés, galhetas e um deles bateu-me com a pistola na cabeça e causou-me sérios ferimentos”, informou Baptista Caipo.
Por volta das 20H00, as mães dos detidos e um grupo de jovens armaram-se de paus e catanas e dirigiram-se à unidade policial para tirar satisfações aos agentes. Em resposta, os efectivos da Polícia Nacional dispararam para dispersar a população.
Para além de terem recebido a pedra, os agentes policiais obrigaram os jovens a pagar 500 dólares pela sua libertação. “Entregámos a pedra ao adjunto do chefe Mizé. Eles venderam o diamante e deram-nos 100 dólares. Quero dizer, perdemos, para além do diamante, mais 400 dólares”, calculou Baptista Caipo.
Num outro incidente, na sequência da confusão das pedras, um grupo de gendarmes katangueses, comandados pelo “brigadeiro” Yuri, protagonizou desmandos. Queimou a viatura de um oficial superior das FAA, por suspeitar que a mesma transportava um diamante de alto valor. Os gendarmes pertencem ao contingente militar “ido” das Lundas.
Na zaragata seguinte, os referidos katangueses, segundo depoimentos dos populares, desarmaram um dos agentes da Polícia Nacional, que perambulava embriagado pelo mercado e atacaram o posto policial de Seteca, de pau a pique e adobes, como boa parte das unidades militares e policiais da província.
Os agentes em serviço, surpreendidos pela acção, puseram-se em fuga. Um deles, na retirada, foi abordado por um ex-capitão da UNITA, Aurélio, que lhe retirou a arma e, numa acção individual, expulsou os katangueses da unidade policial. Os populares continuam a divulgar várias versões sobre as eventuais vítimas dessa confusão.
“Encontrar um diamante grande aqui pode significar a morte. As armas aparecem e deixa de haver distinção entre polícias, militares e os homens da Ascorp. Eu aconselho sempre os jovens que é melhor entregar os diamantes do que perder a vida”, referiu um mais velho da aldeia, cujo filho tem estado em fuga por causa de uma pedra.
Em Seteca nota-se a conversão dos serviços de inteligência militar e da “bufaria” para detectar o percurso dos diamantes de grande valor.
Há um ano e meio no garimpo, João Trigo, de 50 anos e proveniente do Huambo, investiu 800 dólares numa moto-bomba para facilitar o seu trabalho. “Mal a polícia soube que tinha uma boa moto-bomba, vieram confiscar-me o material. Aqui na margem do Rio Mbuete os tiroteios são constantes. Os agentes estão sempre aqui, para confiscar o nosso material de garimpo e revendê-lo noutras áreas. Somos sempre obrigados a pagar 50 a 100 dólares para reaver o nosso material”, comentou o cidadão.
Nessa região, agentes policiais e militares introduziram uma nova palavra no léxico das violações dos direitos humanos: “Tamisar”.
A 7 de Janeiro, na maior operação de expulsão de garimpeiros decorrida na área, militares e agentes policiais, entre muitos, arrancaram a pele das costas de Gabriel António, 22 anos, com a peneira de garimpo. Algumas das peneiras são feitas com latas de óleo de cinco litros, furadas com pregos. É com essas saliências que as autoridades, quando lhes dá na real gana, esfolam as costas dos azarados. A essa prática de tortura atribuíram o nome de “tamisar”, tão incompreensível quanto o acto em si.
O garimpo é ilegal. Vitorino Kassinda, 20 anos, soldado das FAA, reconhece o facto. Desde Fevereiro, tenta a sua sorte. “Estou a arriscar porque isso dá mais dinheiro do que ser motorista”. João Trigo e outros garimpeiros repreendem-no pela afirmação. “A falta de empregos é que nos leva a essa situação, um motorista, pelo menos, tem um salário mensal. Esta vida aqui é de sofrimento, há mais de um ano e meio que abandonei a minha família e ainda não levei nada para casa”, lamentou João Trigo, pai de sete filhos.
A Ascorp, associação liderada pelo russo-israelita Lev Leviev, tem sido referenciada como representando, também, interesses de Isabel dos Santos, filha do presidente Dos Santos. A Sodiam/LKI é um braço da Endiama, associada ao norte-americano Maurice Tempelsman, patrão da LKI.
Tanto Maurice Tempelsman como Lev Leviev representam hoje o glamour do jet-set do ocidente. Nas zonas de garimpo, as siglas que os enriquecem, cada vez mais, são parte das estruturas de terror e espoliação dos mais fracos.
Qual é o papel do Estado no meio de tantas incongruências legais? Os garimpeiros, via de regra, são apenas interpelados após o trabalho de extracção de diamantes. Estarão os legisladores angolanos atentos a essa situação?
Os estrangeiros que mais beneficiam com garimpo estão devidamente legalizados e se afirmam decentes. Por sua vez, o garimpeiro, o angolano, permanece sempre em situação de ilegalidade e sujeito a todo o tipo de abusos. A quem serve essa atitude imoral?
Outros combates
Para além da destruição causada pela guerra, Bié enfrenta agora o desgaste do seu ecossistema com a alteração anárquica dos cursos dos rios, queimadas de incomensuráveis zonas florestais para a prática de caça e fabrico de carvão.
A 24 de Agosto, a aldeia de Seteca testemunhou uma sessão de registo de adultos caricata, dirigida pelo responsável local, Sr. Kalandula. O registo implicava um outro prévio de militância no partido no poder, o MPLA. Num passeio de megafone, no dia anterior ao registo, este apelava à aderência ao MPLA e anunciava, “vocês têm de votar naquele que tem a cara no dinheiro, que vocês usam para comprar chapas e construir as vossas casas. Acham que aquela cara alguma vez sairá do dinheiro”?
Em Chitembo, o registo de adultos tem requerido músculos. Os adultos têm sido obrigados a fazer 15 adobes, por pessoa, antes do registo. O soba passa, então, uma nota a confirmar a prestação do serviço e a conceder o seu aval para o registo.
Por sua vez, na comuna de Caiei, a 42 km a leste do município de Nharea, desligados do resto, os 26,813 habitantes vivem à mercê dos tribunais da ignorância. Desde janeiro passado, os populares, segundo o administrador Afonso Volopi, já condenaram 43 pessoas à morte por envenenamento. Acusaram-nas de feitiçaria e deram-nas a beber o mbulungo, um veneno extraído das cascas de uma árvore local. Morreram.
“Tem sido muito difícil o combate à ignorância, nesta área. As pessoas acreditam nessa sistema tradicional de justiça. Tudo temos feito para acabar com essa prática”, desabafou o administrador.
Na realidade, o poder, em Angola, governa-se a si próprio enquanto o povo, “enfeitiçado”, assiste ao espectáculo e, quase sempre, paga para ver. É o show da sua própria condenação.