- À memória de Carlos Cardoso e de António Siba-Siba Macuácua, de quem o crime organizado retirou a vida
Ericino de Salema
Há pouco mais de três anos, alguns jornais moçambicanos, agindo, aparentemente, como (re)construtores sociais da realidade, reportaram um caso que fizeram questão de classificá-lo de algo escandaloso: tudo gravitava em torno do facto de Eduardo Mulémbwè, presidente da Assembleia da República (AR), ter pedido um crédito para consumo no valor de mil milhões de meticais, o que, para alguma literatura, é equivalente a um bilião de meticais, num dos bancos comerciais do país, que não conseguiu escapar aos apetites dos poderosos.
“Mulémbwè saca um bilião para comprar ovos em Nelspruit” – assim titulava um dos semanários em artigo de capa (primeira página), com tiques de sátira excessiva, ao que se acrescia o coro do editorialista da mesma publicação e de pelo menos dois dos seus mais proeminentes colunistas.
Quanto a nós, este caso pode ser usado para elucidar que o jornalismo moçambicano ainda não está devidamente capacitado para agir como watchdog – olheiro dos poderes instituídos –, por ele deixar claro que há um crasso desconhecimento de conceitos tão básicos como o de crédito para consumo, a ponto de se reduzir este exercício à compra de ovos.
Se a memória não nos atraiçoa, estava minimamente claro que o presidente da AR estava a cumprir, com regularidade, ao pagamento mensal da letra correspondente ao que foi pedir ao Banco Austral. Bem vistas as coisas, e tendo em mão aquilo que o semanário SAVANA anunciou em 2000 como sendo os “salários” de Eduardo Mulémbwè em cinco anos (10 biliões de meticais), não é coisa doutro mundo uma pessoa com rendimentos tais pedir um bilião para consumo.
É que, diferentemente de um macaco, por exemplo, para o qual consumir pode ser o mesmo que comer, para um humano, como dizem economistas de várias escolas, consumo engloba, na essência, a reabilitação de habitação e, nalguns casos, a sua própria construção, a compra de automóveis, o pagamento de uma formação e por aí em diante. E, para conceder esse tipo de crédito, a banca estipula a capacidade de endividamento dos seus mutuários tendo como base os rendimentos destes.
Sommerschield II: invejosas mansões
Sabe-se que muitos governantes de alto nível ergueram, na Sommerschield II, mansões que dariam inveja mesmo ao homem mais rico do mundo, por serem de uma luxuosidade não normal num país como Moçambique, que é dos mais pobres do mundo, sem, no entanto, pedirem crédito à banca, quer o chamem para consumo, para habitação ou coisa parecida. Que não tinham como fazer aquilo só com os seus salários é demasiadamente óbvio para não merecer muitos comentários.
Muitos dos que são hoje detentores dos casarões da Sommerschiel II embarcaram naquilo que alguns teóricos de transparência, responsabilização e corrupção apelidam de patrimonialismo, para lograrem os seus intentos: tal exercício (patrimonialismo) é definido como sendo a apropriação privada de bens públicos.
No país o fenómeno da corrupção atingiu níveis insuportáveis, a ponto de políticos que recusavam a sua existência durante anos e anos terem despido as suas seculares máscaras para, em seguida, virem a público admitir a gravidade da situação. Do discurso do ex-Chefe do Estado, Joaquim Chissano, proferido a 25 de Junho de 2001, no bairro de Bagamoyo, na cidade de Maputo, quando foi do lançamento da Estratégia Global da Reforma do Sector Público, transpirou que ele até conhecia a empresa que pior servia ao cidadão: a Electricidade de Moçambique (EDM).
Antes do lançamento da acção retrocitada, o Departamento de Prevenção e Combate às Calamidades Naturais (DPCCN), uma instituição pública adstrita ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, mudou de nome, passando a chamar-se Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC). Questionado na altura sobre a mudança de nome, mantendo-se as mesmas pessoas pelo menos na sua liderança, o então ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, Leonardo Simão, disse que o anterior nome estava já muito gasto e abalado, devido a uma série de práticas ilícitas – traduzindo, infere-se que se estava a referir à corrupção.
Antes de a nova instituição (INGC) completar um ano de vida, teve que se lançar na administração dos esforços insertos na mitigação das cheias de 2000, de que não há memória no país. Do rol das práticas questionáveis que o INGC levou a cabo nessa operação destaca-se o sumiço de pelo menos 100 barcos doados por vários países, para se fazer face àquele evento extremo. Moral da estória: mudou-se mecanicamente de nome, sem outro tipo de engenharias, de tal sorte que os próprios líderes da orquestra se mantiveram intactos, alargando, surpreendentemente, as suas “estratégias de sobrevivência”.
Se a “saída” encontrada pelo na altura chefe da diplomacia moçambicana tivesse funcionado, não escondemos que teríamos sido os primeiros a sugerir que se fizesse o mesmo para com a EDM: é que nesta firma pública o “estado da crise” é, de longe, muito mais grave que as simples (?) facturações “cabritescas”, conforme o sugerem investigações levadas a cabo pelo colega SAVANA.
Da Net - 21.09.2005