Conheci Reinata Sadimba, a famosa ceramista moçambicana, num dia de inverno, escuro e ventoso, extraviado em pleno verão afro-austral.
Uma amiga espanhola, a viver em Maputo, insistiu em que a acompanhasse ao atelier da artista. Encontrámos três mulheres sentadas sobre esteiras, conversando numa língua radiante, enquanto das suas mãos distraídas, afundadas entre a viva escuridão do barro, iam nascendo fabulosos seres. Soube logo, das três, quem era Reinata, mesmo nunca a tendo visto antes. Há artistas assim: não os conhecemos, mas somos capazes de os reconhecer, quando pela primeira
vez os encontramos, porque as obras deles contém algo do seu carácter.
Reinata é uma mulher pequena e magra, com o rosto laboriosamente tatuado, e um piercing sob o lábio inferior, que lhe confere um aspecto simultaneamente arcaico e contemporâneo. Nascida à margem de toda a modernidade, a muitos quilómetros da esperança e da prosperidade, parecia destinada ao mesmo destino infeliz da maioria da população moçambicana.
Todavia, iludiu-o. Como conseguiu triunfar? Eu digo-vos - através do exercício quotidiano da alegria, de um permanente espanto infantil perante a beleza do mundo, de uma feroz vontade de viver, e, finalmente, de um desrespeito soberano pelas normas, a que poderíamos também chamar inconformismo. Tudo isto transparece nas peças que saem das suas mãos. São mães exibindo os filhos ao mundo ou amamentando-os. Casais que se amam, homens com mulheres, mas também mulheres com mulheres e homens com homens, numa sexualidade explícita, desenfreada, que parece desdenhar, com uma clara gargalhada, toda e qualquer convenção.
Reinata vem de uma aldeia, no norte de Moçambique, em Cabo Delgado, com alguma tradição de cerâmica utilitária, como potes e moringas. Terá sido ela, porém, a primeira a moldar figuras. Hoje as suas peças, um verdadeiro exército de seres prodigiosos, ameaçam invadir o planeta, sendo possível encontrá-las em museus e colecções privadas, em todas as grandes cidades europeias e americanas. Na aldeia de Reinata já toda a gente molda formas humanas e animais. É assim que se criam as tradições.
Conta-se que numa recente visita a Lisboa, Reinata se encontrou com Jorge Sampaio. O presidente português, fascinado com o trabalho da artista, quis saber em que a poderia ajudar. O que queria ela?
Traduzida a questão Reinata sorriu:
"Um marido!"
Ao que consta propunha-se ficar com o próprio Jorge Sampaio. Presumo que qualquer que seja o mundo onde viva não deva ser nada fácil para uma mulher independente, rebelde e criativa, como é o caso de Reinata, encontrar um companheiro. Os homens de todas latitudes receiam as mulheres assim. Todavia são elas quem empurram o mundo. No
caso de Moçambique, Reinata é mais do que um exemplo de esperança - é a própria esperança, criando luz, inclusive nas tardes de Inverno.
PÚBLICO - 30.10.2005