CARLOS PACHECO*
Acaba de vir a lume em Portugal uma biografia assinada por vários autores consagrada a Agostinho Neto – Uma vida sem tréguas, 1922/1979 -, que tem no jornalista Acácio Barradas o seu coordenador.
A primeira impressão que se colhe desta obra é o tom de unanimidade que percorre todos os seus textos. Nenhum dos depoimentos oferece um relato histórico objectivo da personalidade e do percurso político do líder africano. Talvez porque as pessoas convidadas a dar o seu
testemunho estejam todas intimamente ligadas ao regime do MPLA e incapazes, por um mimetismo ideológico, de falar de um outro Neto, diferente do estereótipo propagandístico que se tem esculpido dele.
Efectivamente a imagem que o livro fixa do fundador do Estado angolano é a do humanista, do chefe carismático, dotado de virtudes excepcionais e que sabiamente governou o seu povo. No entanto, da primeira à última página não se encontra uma voz dissonante, todos vão na mesma direcção ao render culto à figura do "herói". O livro funciona qual uma peça de ritual destinada a consolidar o mito, sendo
que para isso se silenciaram determinadas acções de Neto à cabeça do movimento de libertação, e depois como estadista, deixando de lado o extenso catálogo das suas vítimas, o desastroso balanço da sua governação e o deserto trazido a Angola pela desvairada intolerância da sua "república".
Neto personificou em África, como mais ninguém, "as doutas trevas do socialismo autoritário", para usar uma expressão de Octávio Paz, escritor mexicano. Na Angola que ele concebeu não havia lugar para os moderados nem para os sem partido. Uns e outros eram fustigados na imprensa oficial como suspeitos de se quererem substituir aos antigos
senhores. Ficar de fora [ou não se juntar ao MPLA] significava ser inimigo do povo, ser contra-revolucionário. Aliás, lembro-me de um comício em 1976, no largo do palácio, em que Neto ao discursar para a multidão ali concentrada a incitou com estas palavras: "se virem um
contra-revolucionário levem-no à DISA" [a polícia política].
Contra-revolucionário no léxico dos ideólogos do MPLA não servia tanto para identificar as pessoas que descressem em silêncio [e na intimidade de si próprias] das propostas da ideologia dominante; mas as que não participavam "dos rituais e das práticas exteriores" que conferiam "existência material" à ideologia. Um dos rituais era dar
vivas ao MPLA e ao camarada presidente Agostinho Neto no final de cada reunião [de braço levantado e punho cerrado]; ou varrer as ruas, ou cortar cana-de-açúcar no Caxito, ou descarregar navios.
Os servidores públicos conformavam-se e aderiam a estes exercícios. Era o que os dirigentes chamavam de reeducação das massas na produção directa. Não seguir estes preceitos pressupunha riscos muito sérios. Era-se acusado de pequeno-burguês e de traidor aos princípios revolucionários. Nem a população europeia foi poupada a tais constrangimentos. Segundo o próprio Neto, ela também deveria associar-se às comissões populares de bairro, à defesa popular e a "todas as formas de organização" do MPLA.
Era um quotidiano infernal fundado no conceito do "homem novo", que reproduzia a rotina do "socialismo realmente existente" da União Soviética, ia China e de outras "democracias populares"; e que Václav Havel, ex-presidente da República Checa, descreve muito bem no Poder dos sem Poder. Por medo, os súbditos submetiam-se a este estilo de
vida e adoptavam aquilo a que Boris Pasternak, escritor russo (1890-1960), deu o nome de "linguagem da mudez", porque só ela garantia a sobrevivência e o êxito de quem a usava.
Dizer que Neto exerceu um papel notável nos negócios da administração do país, é esquecer o desmantelamento anárquico a que se procedeu nas estruturas intermédias do aparelho de Estado, nas fábricas e em outros sectores económicos. A extinção das juntas de freguesia e das
administrações civis é um exemplo entre muitos. Com a integração destes órgãos nas comissões populares de bairro, logo adveio o caos: a maior parte dos arquivos desapareceu, roubados ou queimados. Pelo país fora centenas de arquivos conheceram a mesma sina provocada por reestruturações irracionais. Nas unidades de produção confiou-se a direcção a Comissões administrativas que foram preenchidas por
incompetentes, analfabetos e comissários políticos que, glosando o estribilho da "unificação de todos os trabalhadores", se entregaram a uma rapina sistemática dos bens públicos.
Quanto mais Neto perorava sobre a transformação da economia colonial numa economia ao serviço do povo, mais Angola se afundava. Ele e os do seu grupo, na verdade, não tinham a menor percepção dos problemas do país. Vindos da guerrilha somente embebidos de palavras de ordem, assim passaram a governar: com exortações e com quadros políticos de fraca envergadura e sem nenhuma preparação técnica, mas que Neto em Setembro de 1975 considerava os mais aptos a gerir o desenvolvimento nacional pela via socialista em íntima ligação às massas populares.
Por outro lado, apontar Neto como um humanista, é uma redundância. Um humanista não assassina e não persegue os seus rivais com a fúria com que ele o fez desde os tempos da luta armada; um humanista não cria um Tribunal Militar Especial, totalmente invisível, responsável entre 1977-79 pela liquidação física de milhares de cidadãos nacionais, a lembrar as tristemente célebres Alçadas dos tempos do absolutismo monárquico; um humanista não permite torturas e execuções sumárias, não provoca assassinatos jurídicos, não tolera práticas abusivas de investigação criminal e sequer mantém em cárcere privado tanta gente durante vários anos.
Pelo contrário, um humanista pauta-se pelo respeito à justiça e pela defesa dos direitos e garantias dos cidadãos. Deste modo, ao agir por vingança qual um deus da morte, Neto manchou a dignidade do seu cargo e apenas mostrou ser o chefe de um Estado facinoroso que não soube
defender os seus filhos.
Tão-pouco se pode tê-lo na conta de um democrata. Já não o era nos tempos de estudante em Portugal, como o puderam perceber alguns dos seus colegas que conviveram com ele mais intimamente, entre os quais Amílcar Cabral. A sua pulsão autoritária era patente nos mínimos gestos. O resto viria a confirmar-se no maqui. O seu conceito de autoridade revelou-se sempre do tipo marcadamente cesarista. Ele não
se esforçava por aplicar a arte da sedução e da persuasão,
especialmente com os indiferentes e recalcitrantes, afim de assegurar a união das hostes. Por ter construído a sua autoridade pela forca, pela subjugação e pela ameaça, não admitia questionamentos.
Desgraçado de quem lhe desobedecesse. Foi um tirano na acepção rigorosa da palavra.
Replicar-me-ão que uma das virtudes de Neto foi a firmeza com que defendeu a integridade territorial de Angola. Com certeza, todavia isso não basta para o qualificar como um político superior. Stalin também defendeu a sua "Santa Rússia" da invasão hitleriana, mas nem por isso deixou de ser um monstro para o seu povo. Talvez me perguntem se, depois de tudo, Savimbi ou Holden Roberto não teriam
feito melhor à testa do Estado. Nem pensar. Teria sido pior.
*HISTORIADOR ANGOLANO
PÚBLICO - 28.11.2005