entrevista
Michel Cahen Historiador francês
As etnias moçambicanas estão a ser estudadas por este investigador do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Bordéus, que coordena também a 'Lusotopie'
armando Rafael
Quando é que começou a interessar-se por Moçambique?
Em Julho de 1975. Tinha 22 anos e, como muitos dos meus amigos da Sorbonne, ainda estava influenciados pelos acontecimentos de Maio de 1968. A maioria veio para Portugal, para ver a Revolução dos Cravos, mas eu não. Optei por África.
Porquê?
Era estudante de História e, à semelhança de muitos estudantes na altura, fazia longas viagens, de quatro, cinco meses... A maioria ia para a Índia, mas eu optei por África. E, em 1975, fui a Moçambique. Fui à boleia desde Nairobi e cheguei à zona das "três fronteiras" - Moçambique, Malawi e Zâmbia - pouco depois da independência. Esperei três dias para apanhar boleia de um camião para a Beira. O motorista era um antigo membro dos comandos, com uma tatuagem no braço.
Passou a fronteira sem problemas?
O soldado da Frelimo não sabia muito bem o que fazer... Como eu não tinha visto, deu-me uma guia de marcha para ir até à Beira...
E foi...
Sim, mas o mais interessante foi que o antigo comando tinha um auxiliar o Pedro, que lhe preparava o pequeno-almoço, o almoço e o jantar. Mas nunca comia connosco, o que era estranho. Um dia, virei-me para o motorista e perguntei-lhe: "Então e o Pedro? Não come?" Ainda hoje recordo a sua admiração: "O Pedro? O Pedro só come à noite." Ou seja, como era preto, o Pedro só comia à noite, e pronto! Isso fez-me pensar na similitude que podia existir entre o colonialismo francês e o colonialismo português, que não passava tanto pela implantação do grande capitalismo, mas mais pelos militares, pelos padres, pelos servidores da administração, pequenos comerciantes... Essa conversa fez-me pensar nas semelhanças entre os colonialismos francês e português e no tipo de colonialismo que poderia ser produzido por uma metrópole europeia com poucas potencialidades de investimento em capitais. Muito diferente, por exemplo, da Grã-Bretanha e da Holanda.
Isso levou-o a interessar-se por Moçambique?
Isso e o regime de partido único. Ao contrário dos meus amigos, que tinham apoiado a luta contra o colonialismo, transformando, depois, esse apoio numa solidariedade com o partido único, sempre fui contra os partidos únicos.
É essa a razão que o levou também a sublinhar a incoerência dos militares que fizeram uma revolução em nome da liberdade e da democracia em Portugal, lançando uma descolonização que transferia os poderes para partidos únicos nas colónias?
É. Até porque isso deriva de um certo paternalismo de alguma esquerda europeia que, nessa altura, se manifestava contra as ditaduras na América Latina, apoiando, no entanto, regimes de partido único em África porque consideravam isso como uma etapa na criação da nação. Qual nação? A nação que nascia das fronteiras coloniais que tinham dividido vários povos?
Voltou muitas vezes a Moçambique?
Voltei em 1981, 1985, 1988... Comecei a interessar-me pelo impacto dos regimes de partido único na desagregação das sociedades tradicionais, já que a Frelimo apostou num paradigma de modernização autoritária e de transformação rápida que não respeitava as identidades sentidas pelas populações. Para a Frelimo havia um só povo, uma só nação e um só partido, do Rovuma ao Maputo. Afinal, uma concepção semelhante à dos portugueses, para quem Moçambique só era Moçambique porque era Portugal.
Começou a estudar as etnias...
E a tentar perceber o fracasso das aldeias comunais. Para quem era da Frelimo, o fracasso das aldeias comunais resultava do facto de o Estado não ter conseguido pôr em prática a linha do partido. Para mim, o que importava passava por outra coisa o princípio da aldeia comunal era, em si mesmo, uma agressão à sociedade camponesa.
Porquê?
Os africanos têm uma relação muito forte com o espírito dos seus antepassados. Pelo que deixar as suas terras significava também deixar os antepassados para trás.
Como é que explica as agressões da Frelimo às estruturas tradicionais?
O que se pode esperar quando se enviam jovens de 18 anos para os campos, onde era suposto terem de se impor a régulos com mais de 70 anos? Isso é uma agressão completa. E quando eles proibiam os rituais da chuva e depois não chovia? Muitas vezes, ouvi pessoas do povo referirem-se aos responsáveis que vinham de Maputo como "o camarada que veio da Nação". Isso é um vocabulário popular muito interessante. Ou seja, o povo era o povo organizado, que era membro do partido e da administração do Estado. Quando havia fome, uma pessoa do povo tinha direito a um saco de arroz. O popular só recebia um quilo.
Daí, passou para a Renamo?
O que me interessou na Renamo foi perceber que, ao contrário do que muitos tinham previsto, ela não tinha acabado com a independência do Zimbabwe, em 1980. O que significava que a Renamo era autónoma e conseguia sobreviver para além do apoio da África do Sul. Nessa altura, havia quem dissesse que a Renamo exprimia apenas os interesses do apartheid. Mas essa imagem não era compatível com a sua influência. Quando Samora Machel morreu, em 1986, a Renamo actuava em 80% do território. Em parte, as pessoas sentiam-se agredidas pela Frelimo e acreditavam que a Renamo as protegia do Estado.
Entrou em contacto com a Renamo?
Só visitei as suas zonas de influência em 1994. Segui a sua campanha eleitoral durante meses...
E interessou-se pela Renamo...
Mais pelo mundo das etnicidades, já que a Renamo pouco, ou nada, diz sobre as etnicidades. A Frelimo é que transformou a questão das etnicidades num facto político, quando as agrediu. Não percebendo que os regulados estavam em crise no final do período colonial, altura em que muitos filhos ou netos de régulos preferiam ser motoristas de táxi na cidade do que régulos nas aldeias. Ao tentar apagar tudo, a Frelimo recriou-lhes essa legitimidade.
É essa relação da Renamo com os régulos que explica a votação em 1994?
Creio que muitos dos que, em 1994, votaram na Renamo o fizeram porque se sentiam marginalizados. E não apenas pela Frelimo. Muitos votaram contra a sua própria marginalização pelo Estado moderno.
Conscientes do que faziam?
Penso que sim. Repare-se que as comunidades que mais apoiaram a Frelimo foram precisamente aquelas que melhores relações tinham com os portugueses. E as populações que mais se revoltaram contra os portugueses foram as que estiveram mais perto de Renamo.
DN – 30.10.2005 -Leonardo Negrão