Por Afonso dos Santos
Já que esta terra é tão fértil em súbitas novidades, que aparecem assim dum momento para o outro, como essa do combate ao deixa-andar, então deixem lá perguntar: quando é que vai começar o combate ao deixa-seguir?
Ao escrever aqui que o combate ao deixa-andar foi uma novidade súbita, isso baseia-se no seguinte: é que foi de repente que apareceu uma imensa plêiade de combatentes contra o deixa-andar. E apetece fazer duas perguntas. A primeira: onde é que estavam esses tantos oponentes ao deixa-andar, se ninguém antes se tinha apercebido da sua existência? A segunda pergunta: se eles eram assim tantos, embora se mantivessem ocultos ou camuflados, visto que, segundo parece, a população em geral não se tinha apercebido da sua existência, se eles eram tantos assim, como é que foi possível tanto deixar-andar?
Talvez a resposta seja a seguinte: isso só foi possível por causa do deixa-seguir.
O deixa-andar é uma forma mais ou menos popular para designar o laxismo, que, segundo o dicionário, é uma “tendência a fugir ao dever e à lei, com base em razões pouco ou mal fundamentadas”.
O deixa-seguir pode ser uma forma para designar o seguidismo, que consiste em imitar tudo o que o líder diz, e em fazer unicamente aquilo que se pensa que o líder vai gostar. O objectivo principal de cada um não é, portanto, resolver algum problema ou mudar alguma coisa, é, sim, agradar ao líder, para se manter no lugar que ocupa. O seguidismo constitui, por conseguinte, uma das formas mais perfeitas de oportunismo.
Ora, alguma vez os oportunistas políticos mudaram alguma coisa para melhor? Portanto, adeus ilusão de mudança. Marque-se a data do funeral da esperança.
Mas esse não será o funeral de toda e qualquer esperança; será tão-somente o funeral daquela esperança caquéctica que vive acasalada com o senil deixa-seguir.
Neste grande carnaval do deixa-seguir, a que agora se vai assistindo, a cena principal consiste em colar com cuspo ou meter a martelo a frasezinha mágica “contra a pobreza absoluta” associada a tudo o que for evento ou verborreia.
Há umas semanas atrás, na primeira página dum jornal, uma notícia sobre o lançamento dum selo, tinha como título principal o seguinte: “Destacadas acções de luta contra pobreza”.
Seja o lançamento dum selo, seja a inauguração de novas instalações de qualquer instituição, seja uma exposição de arte ou um concerto musical, seja o dia mundial disto ou daquilo, seja um concurso de misses, seja uma reunião de mulheres, tudo isto agora é “contra a pobreza absoluta”. Mas se todo este tipo de coisas já acontecem desde há vários anos, sem que, nesse tempo, aparecessem associadas às “acções de luta contra a pobreza”, e nunca serviram para impedir que essa “pobreza absoluta” alastrasse, significa que o uso dessa frase não passa duma moda do deixa-seguir. O que demonstra bem que nenhum desses acontecimentos vai contribuir para reduzir a pobreza. Aliás, esta parece ter-se tornado apenas um assunto que algumas pessoas aproveitam para se divertirem.
Mas se alguém ainda insiste em ter dúvidas de que o tema da pobreza não é mais do que um divertimento, então leia o que vinha na primeira página do jornal “Notícias” (17.Outubro.2005): “Um comunicado do Ministério da Mulher e Acção Social, enviado à nossa Redacção, refere que o Dia Internacional de Luta Contra a Pobreza será assinalado com a realização de actividades de carácter cultural e recreativo”.
É isso mesmo: a pobreza é um assunto cultural e recreativo. Ponto final.
E agora até vai ter um prémio nacional. E o prémio vai para: ...o melhor praticante do deixa-seguir! Irá para quem melhor cumprir o sagrado dever de bajular ou o diabólico direito de ser bajulado.
Também os heróis passarão a ser nomeados por decreto administrativo. Serão certamente os heróis do deixa-seguir. E assim a força da mudança vai mudando o país à força, desprezando ostensivamente a opinião pública predominante, tal como se está a assistir no caso dos símbolos nacionais. Depois de asfixiar no saco burocrático os símbolos nacionais, agora chegou a vez dos heróis.
É essa a acção típica do poder burocrático: substituir a essência ou o conteúdo das coisas por uma simulação administrativa ou formalista dessas mesmas coisas. Tal com está a acontecer com a tal “erradicação da pobreza”, que se tornou uma simples frase decorativa. Senão vejamos: como é que se pode erradicar um fenómeno sem conhecer e erradicar as suas causas? Ora bem: nesses discursos todos, há alguém que esteja a analisar e a pôr em evidência quais são as causas da pobreza?
E nada mudará enquanto os quatro cavaleiros deste apocalipse continuarem montados nos eventos discursivos e nos discursos eventuais. O primeiro dos sina!s de que algo terá começado a mudar só se vislumbrará quando esses quatro cavaleiros forem apeados dos seus cavalos de farsa.
E quais são esses quatro cavaleiros? São: o agá-i-vê-sida, a pobreza absoluta, o deixa-andar e... o deixa-seguir.
SAVANA - 21.10.2005