Por Florentino Dick Kassotche
Já contei esta história por várias vezes a muitos meus amigos de andanças, e hoje decido compartilhá-la com o meu vasto público leitor. È uma história triste, mas interessante ao mesmo tempo. Quando eu comecei a compartilhar a mesma casa com a minha namorada dinamarquesa, as suas duas empregadas, que eram pretas iguais a mim não se sentiram bem em ter um patrão preto. No dia em que levei comigo alguns meus pertencentes e passei a noite naquela casa que viria mais tarde, a ser também minha, logo na manhã seguinte, como se eu não representasse algo para elas, as duas senhoras entraram casa de banho adentro, a assobiar, fingindo que estavam muito preocupadas com a limpeza. Lembro-me que continuei o meu banho num à-vontade que lhes pôs mal dispostas, e desse dia em diante nunca mais viriam a repetir a brincadeira na casa de banho e nem num outro canto da casa, reconhecendo, assim, a presença de um homem e imune a provocações sem concatenação.
Vieram outras provocações, mudanças bruscas de ementas, para o pior, claro, quando soubessem de antemão que a “patroa" delas não viria a uma dada refeição; o uso excessivo e abusivo de telefone fixo, e na minha presença, numa clara demonstração de que eu, antes de fazer parte do agregado daquela casa, tudo aquilo era permitido: jogos de ciúmes em relação às minhas amigas, numa de defenderem a patroa, mas com outros objectivos; a não entrada de mais bocas para a casa de que elas eram verdadeiras donas da cozinha; visitas de seus familiares nas horas em que a patroa não estava em casa, numa de que os parentes de uma funcionária doméstica não podem morrer de fome, enquanto elas estiverem a trabalhar para uma patroa abastada; entre muitas façanhas.
Vendo que eu não me chateava com todas essas provocações, as duas irmãs decidiram aprontar uma pesada: conhecendo o mealheiro da senhora, retiraram de lá uns mil dólares. Passados três dias, a “senhora” em pleno almoço, quis saber:
-Terás levado, por acaso, mil dólares de um dos meus esconderijos? - Ela perguntou-me.
-Mil dólares? Não!, e nem sei onde é que guardas dinheiro nesta casa.
-Posso pôr as mão no fogo que as minhas empregadas não são capazes de um acto igual. Estão comigo há mais de cinco anos, e nunca houve uma coisa do género.
-Estás indirectamente a insinuar que fui eu a fazer desaparecer o dinheiro?
Não posso dizer que sim ou não, só que deve haver uma mão estranha que deve querer aproveitar-se da tua presença nesta casa.
Senti-me ultrajado nesse dia, mas não tinha maneiras da me defender. Mesmo que o quisesse, não sei se a minha sócia tinha ouvidos abertos para mim! De tanto confiar nos seus empregados, o único suspeito, fora a nossa ligação sentimental, era eu,
De um dia para o outro, os tipos da raça dela, que por força de circunstâncias, tinham se tornado meus amigos de convívios, olhavam para mim com um ar do desprezo e desconfiança. A minha própria sócia, embora fizesse esforço de fazer de conta que tudo estava bem, eu sentia nos seus gestos uma certa repulsa, um certo distanciamento.
Fui ter com o meu pai adoptivo, o velho Ismail, e dei-lhe o picture do que se estava a passar comigo.
- E o que esperavas que as pretinhas fizessem? Antes de seres promovido a “patrão” elas eram as verdadeiras donas de casa. Quando a patroa delas viajasse, elas tomavam canta da casa, e agora, com a tua presença tudo mudou na vida delas. Se, controlavam o dinheiro disto ou daquilo, agora, és tu. Se se beneficiavam disto ou daquilo, por mais que continuem a usufruir desses direitos, mas já não é da mesma maneira como dantes A tua presença ofusca muitas coisas; alterou modus vivendi delas. E para demonstrarem o seu não consentimento com a tua cara-presença, elas preferiram dar-te a entender do jeito que estás a contar-me.
- E não aceito ser acusado sem mais nem menos. Quero pôr esta história em pratos limpos.
- Como, meu filho?
- Quero um bilhete, que hei-de viajar para Tete, e depois para Angónia.
- E achas que essas pretas hão-de ter medo dos teus curandeiros?
- Caso não, hão-de pagar por aquilo que fizeram.
- Não sejas maldoso. Antes de partir, despede-te da tua namoradinha e das ditas empregadas, passando por explicar-lhes o que vais fazer e o que representará isso na vida futura de quem, realmente, pegou na massa,
E à hora de almoço, a presença das empregadas junto da patroa.
- Chamei-vos que é para vos informar que amanhã, terça-feira, viajo para Angónia, uma das zonas do país onde existem cientistas tradicionais que podem nos ajudar a recuperar o dinheiro que desapareceu nesta casa. Não sei o que há-de acontecer com a pessoa que levou o dinheiro, mas não venham dizer, um dia, que eu fui mau. Com a Angónia não se brinca, minha gente!
E, de facto, eu viajara. Chegado ao destino, quando eram dezassete do mesmo dia, a minha namorada telefonaram-me:
- Eh, podes voltar, que o dinheiro já apareceu!
-Como assim?!
- Num sitio que nunca esperava - em baixo do meu computador. Dos mil dólares, faltam cento e cinquenta, Antes de te pedir desculpas, tenho que confessar que a magia da Angónia deve ser tão forte que deixou as ladras sem fôlego! Já agora, gostaria de conhecer esses teus curandeiros, que é para tratar o cofre do meu serviço, que tem sido visitado por umas forças estranhas.
- Diga-me uma coisa: quem é que pôs o dinheiro nesse sitio?!
- Forem as duas. Confessaram e estão arrependidas. Queriam que tu saísses sujo dessa jogada e perdesses a confiança da minha gente.
Três dias depois voltei de Tete, Reuni-me de novo com as mesmas pessoas e pedi que fizessem confissões explícitas em frente de mim, caso contrário, corria-se o risco de a pessoa que tinha levado o dinheiro perder todos os dedos da mão que foi autora do crime, um por um. E as duas, com lágrimas nos olhos, confessaram o crime e as intenções da mesma: estavam acostumadas a trabalhar para a branca e a minha presença atrapalhava muita coisa.
Moçambicanamaniamente reflectindo, os níveis de confiança-desconfiança têm a ver com as cor-cores, etnias, origens, grupos de pertença, formações académicas, ,,,, E na esteira de empregadas, quantas outras, de outros níveis, num jogo de afirmações sociais, preferem acidificar kinships seculares, em troca de reconhecimentos pontuais!? Fabricam-se culpados, esquecendo-se totalmente de que a vida é uma sucessão de tempos: passado-presente-e-futuro. E quem saberá o que reserva o futuro para cada ser existencial? E o futuro a virar-se presente, qual será a contribuição do passado, para uma biografia imaculada de toda uma vivência?
A inveja, um dos sete pecados capitais!
ZAMBEZE - 15.12.2005
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