Sérgio Vieira
Em princípios de 62, possivelmente finais de Janeiro, Mondlane vem a Paris.
Arranjou-me uma bolsa da CIMADE, organização do Conselho Ecuménico que apoiava os estudantes refugiados.
Em Sèvres, nos arredores de Paris, onde se encontrava o lar, estavam dois moçambicanos, o Américo e eu, numerosos angolanos, congoleses (k), argelinos que saiam das cadeias francesas e alguns húngaros que vieram para França na sequência dos eventos de Budapeste em 56. Em Poitiers estavam o Pascoal Mocumbi e o Joaquim Chissano, ambos estudando medicina. Na Suíca a Ana Simeão, nos Estados Unidos já se encontrava o João Nhambiu e o António Butsha Kashiputo, creio que no mesmo momento no Reino Unido estudava o Pastor Mabunda.
Dirigia o Lar da Cimade o Pastor ortodoxo, russo branco, Edvokimov e a sua esposa, uma franco-vietnamita, Therèse. Edvokimov, eminente teólogo, homem de coração grande e sabedoria, impunha a não discriminação entre todos que acolhia. Rezava no início das refeições, mas a ninguém obrigava a benzer-se ou com ele orar.
Quando o Presidente Mondlane chegou a Paris promoveu um encontro com os
estudantes das colónias que aí se encontravam. De Moçambique, nesse momento participaram no encontro apenas o Mocumbi e Chissano e eu, não me recordo se o Ganhão já havia chegado.
Porque estudara nos Estados Unidos e aí leccionara, muitos estudantes das restantes colónias olhavam para Eduardo Mondlane com alguma suspeita. A UPA,
ainda não se tornara FLNA, beneficiava dum grande apoio americano.
Os eventos do Congo (K), a guerra do Vietname, o anti cubanismo da administração Kennedy tornavam odiosa a política americana para uma juventude generosa, solidária com a causa da libertação. Qualquer associação com a América tornava-se suspeita.
Esta desconfiança se agravava pelo facto de que, no segundo semestre de 1961, a convite de Adriano Moreira, Mondlane visitara Moçambique, a imprensa local e portuguesa destacaram o evento. Adriano Moreira, homem de grande lucidez e visão que nesse momento dirigia o Ministério do Ultramar, procurava a todo o custo prevenir que a guerra se estendesse às demais colónias.
Por isso retirara a Comissão Administrativa da Casa dos Estudantes do Império, imposta pelo então Comissário Geral da Mocidade Portuguesa, Silva Cunha. Recebia os estudantes das colónias, multiplicando os gestos de apaziguamento.
Abolira o Estatuto do Indígena e o Código de Trabalho para o Indígena, actos na
sequência esvaziados de conteúdo, pela pressão dos colonos e das companhias
coloniais. Nomeara Sarmento Rodrigues para o governo de Moçambique. O Almirante, tal como Adriano Moreira, sentia-se próximos dos círculos das altas
patentes militares que haviam tentado, em Março de 61, o golpe palaciano falhado
contra Salazar e a guerra.
As ideias de Adriano Moreira não diferiam das de Marcello Caetano, já em rota de
colisão com Salazar. Portugal e o Futuro, do General Spínola, publicado nos
princípios de 1974, reflectiam essas perspectivas, mas com 13 anos de atraso,
com a guerra em três frentes e o exército saturado delas e mais que desmoralizado. Marcello Caetano no poder jamais se esforçou de aplicar o que sonhara e capitulou diante dos ultras, arrastando ainda mais o seu país para a guerra.
Com o seu convite a Mondlane Adriano Moreira prosseguia o duplo objectivo de,
forçar a evolução conducente à autonomia e independência e prevenir a guerra. Ele desejaria fazer de Mondlane o Secretário Geral dum governo colonial de Sarmento Rodrigues em Moçambique. Na sequência e face a delicada recusa de Eduardo Mondlane, buscou a participação de Domingos Arouca.
As lutas entre os grupos ultras e mais liberais do regime saldam-se com a derrota dos liberais e Domingos Arouca pagará com longos de ano de cadeia os sonhos de Adriano Moreira. A factura jamais poderia ser saldada por Sarmento, Moreira ou os liberais, mais do que as conspirações Salazar abominava os escândalos.
No final da história, Adriano Moreira fracassou pois que o regime não estava pronto a qualquer mudança ou sinal de mudança. Adriano Moreira foi afastado do Governo pouco depois, os ultras e colonos não o prezavam.
Mondlane aproveitou o convite para reforçar a ligação interna, escamoteando a manobra de Moreira. Mondlane avaliara correctamente a correlação de forças prevalecente em Portugal e estava mais que consciente de que na melhor das hipóteses lhe reservavam o papel de pretinho de alma branca e bem comportado.
Boletim Informativo do Partido Frelimo nº 171 – 04.11.2005