Ao Encontro dos Mambos de Fernando Florêncio é uma obra que melhor nos leva a compreender as relações entre "as autoridades do estado" e as "autoridades tradicionais" em Moçambique.
Após a introdução que aqui transcrevo, leia um pouco do Capítulo VI, em anexo.
Prefácio
Desde os primórdios da antropologia social e cultural, a questão dos sistemas de auto-regulação política, económico-ecológica e sócio-cultural das sociedades diversamente apelidadas de originais, primitivas e tradicionais da África, América e Ásia tem sido um tema permanente.
Em África, a ocupação territorial por metrópoles europeias a partir de meados do século XIX e a edificação dos correspondentes Estados coloniais introduziram neste contexto preocupações novas: com a manutenção, alteração ou destruição destes sistemas e a sua articulação com o novo fenómeno do Estado territorial.
Ao contrário de que previam as ideologias «nacionalistas» de vária índole, a passagem dos territórios coloniais para o estatuto de países independentes (à face da lei internacional) não tornou esta temática obsoleta ou, quando muito, histórica. Bem ao contrário: com uma acuidade não raras vezes maior do que na época colonial, as questões que então se levantavam voltaram a manifestar-se face aos esforços de «construção nacional» e de implantação dos Estados pós-coloniais. A debilidade de muitos destes Estados, frequentemente ligada à eclosão de conflitos armados, conferiu entretanto a estas questões um carácter qualitativamente novo.
A nível internacional, esta última fase tem sido objecto de numerosos estudos, especialmente sob o prisma dos «chefes tradicionais», ou «autoridades tradicionais», sua legitimidade e suas funções, tanto na perspectiva das sociedades («comunidades») envolvidas como na perspectiva dos respectivos «Estados nacionais». Ao mesmo tempo, e com a constituição do domínio interdisciplinar dos estudos africanos a partir dos anos 50, também esta problemática deixou de ser do domínio exclusivo de uma só disciplina, a antropologia, envolvendo nomeadamente a ciência política e a sociologia.
Devido ao desfasamento dos estudos africanos modernos em Portugal, causado pela trajectória política do país no século XX, a temática das «autoridades tradicionais» africanas surgiu entre nós como problemática científica pós-colonial só nos anos 90, sob o impacto do debate internacional, mas também sob o impulso do debate político que começou a desenvolver-se em torno desta problemática nos países africanos de língua portuguesa situados no continente, especialmente em Moçambique. A dissertação de doutoramento em Antropologia Social de Eduardo Costa Dias, bem como as dissertações de mestrado em Estudos Africanos de Fernando Florêncio e Víctor Hugo Nicolau, todas defendidas no ISCTE em meados dos anos 90, terão porventura sido entre nós os primeiros trabalhos de envergadura onde esta problemática foi abordada — por sinal, em relação a três países diferentes: Guiné-Bissau, Moçambique e Zimbabwe.
A continuação destes passos iniciais foi incentivada pelo lançamento, no quadro do Centro de Estudos Africanos — ISCTE e com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, de um projecto sobre «Autoridades tradicionais e Estado em África», que reuniu os três investigadores acima referidos, aos quais se agregaram mais outros, e que, para além dos três países em epígrafe, passou a incluir também a Senegâmbia. Convirá mencionar que a equipa deste projecto manteve frequentes contactos, com manifesto benefício mútuo, com a de um projecto que correu em paralelo no mesmo Centro sobre «Recomposições dos espaços políticos na África lusófona», igualmente financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Ambos os projectos não apenas proporcionaram extensas pesquisas «de terreno», como também contactos com diferentes redes internacionais e uma reflexão teórica aprofundada.
É neste contexto francamente estimulante que Fernando Florêncio elaborou a partir de fins dos anos 90 a dissertação de doutoramento que deu origem ao presente livro, pondo a proveito de maneira exemplar oportunidades e «insumos» que um ambiente propício lhe facilitava e outros conquistados por um esforço pessoal consequente, imaginativo e incansável.
O livro constitui, a dois títulos interligados, um marco para a «produção científica internacional».
Por um lado, representa uma contribuição de primeira importância para o conhecimento de Moçambique. Depois da dissertação de José Fialho Feliciano, baseada numa investigação realizada na segunda metade dos anos 70, a obra de Fernando Florêncio é o primeiro trabalho aprofundado e de envergadura sobre as sociedades rurais moçambicanas. A este título, o seu mérito consiste não apenas em actualizar os nossos conhecimentos, mas também em substituir a imagem ideal-típica frequentemente veiculada por uma análise mais diferenciada, desenvolvida numa perspectiva diacrónica. Ao mes cientistas sociais, moçambicanos e outros.
Por outro lado, estando ele próprio solidamente ancorado no debate científico internacional sobre a temática das «autoridades tradicionais», o livro de Fernando Florêncio irá, sem dúvida, dar impulsos importantes a este mesmo debate. Com efeito, no âmbito da literatura sobre a matéria, ele representa uma das raras combinações bem sucedidas entre uma notável precisão teórica, uma metodologia rigorosa e cuidadosa e uma riqueza descomunal de dados empíricos.
A todos estes títulos, o trabalho aqui apresentado constitui um «produto de excelência» do domínio científico interdisciplinar dos estudos africanos em ciências sociais que — pondo a proveito o que de válido foi realizado neste campo já em condições coloniais e inserindo-se decididamente no contexto internacional — tem vindo a constituir-se em Portugal desde 1974. E há razões bastantes para justificarem a expectativa de que constitua, juntamente com outros, um indicador de que este domínio esteja numa fase adiantada da sua consolidação mo tempo, introduz no debate político acerca do papel real e desejável das «autoridades tradicionais», que em Moçambique continua aceso e carece de uma base adequada de conhecimentos válidos, uma contribuição científica extraordinariamente sólida que tem todas as hipóteses de vir a ser uma referência obrigatória para o debate político e para a investigação entretanto empreendida por alguns.
Lisboa, Dezembro de 2004.
FRANZ WILHELM-HEIMER
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