Atalhe de Foice
Por Machado da Graça
Debate-se hoje no país a questão de saber quem deve ser considerado herói nacional.
Poder-se-ia perguntar se não há nada de mais importante para os moçambicanos debaterem, no nosso país empobrecido.
Mas a verdade é que, a propósito ou a despropósito, se debate quem é herói nacional.
Para definir tão complexa atribuição de título foi mesmo criada, pelo governo, uma comissão. Coisa séria. A cobrar, decerto, mais uma fatia do bolo nacional.
Mas quais serão as razões deste súbito interesse por uma tal questão?
À primeira vista vejo duas:
A primeira é o número, cada vez mais reduzido, de gavetões no monumento da Praça dos Heróis.
Com o passar do tempo e o passar à história de quem vai morrendo, muitos andarão fazendo as contas ao número de gavetões ainda existentes e ao número de possíveis heróis, ainda vivos, para tentar descobrir se ainda lhes sobra lugar para o repouso definitivo. E as contas já devem ser bastante preocupantes para muitos, porque é cada dia mais claro que o espaço não vai chegar para todos.
A outra razão é de carácter político: Normalmente, quem decide quem são os heróis são os vencedores das guerras. Ora a guerra entre o governo e a Renamo e seus apoiantes externos, terminou por um empate. Como se diz muito, agora, terminou sem vencedores nem vencidos. E, portanto, é difícil determinar quem foi herói nessa guerra.
Daí que se vá definindo como herói, ou heroína, gente que se distinguiu na luta armada de libertação, em que o vencedor foi claro, mas ninguém se atreva a definir heróis desta outra guerra, de final negociado.
Só que a oposição se sente diminuída neste retrato da heroicidade nacional. Não tendo participado na luta armada de libertação nacional, não tem nenhum dos seus membros candidato a herói, por essa razão, ao passo que a Frelimo pode, à vontade, ir escolhendo os seus membros mais antigos, não pela sua actuação na guerra mais recente mas sim pela guerra mais antiga.
Porque, num país ainda traumaticamente dividido pelo que aconteceu na guerra de desestabilização, segundo uns, civil, segundo outros, os critérios estão a anos luz de ser os mesmos. Um determinado personagem histórico é, para uns, um herói que lutou, de armas na mão, pelo estabelecimento da democracia no país. Para outros, o mesmo personagem histórico é o chefe de bandos armados, de enorme selvajaria, a soldo do apartheid e do regime racista da Rodésia. Tarefa difícil, senão impossível. Pelo menos enquanto não passarem algumas gerações.
Mas mesmo entre os participantes da luta armada de libertação nacional, as coisas começam a não ser tão simples. Aqueles que cometeram actos heróicos e morreram ao cometê-los, ou morreram pouco depois, são casos que não levantam grandes dúvidas.
O pior são os casos daqueles que cometeram actos heróicos na sua juventude mas continuaram, incomodamente, vivos. E que, ao longo de vidas longas, tal como qualquer outra pessoa, foram cometendo actos sociais positivos e actos negativos. Muitas vezes actos muitíssimo negativos.
Continuaremos a considerar herói aquele que o foi, aos 25 anos, mas se transformou, depois, num ricaço graças à corrupção e ao crime?
Difícil tarefa, a da tal comissão.
Mas penso que uma forma de descongestionar um bocado o problema seria reanimar o hábito de condecorar os cidadãos que se vão distinguindo nas mais variadas áreas da vida nacional.
Em muitos países a condecoração de cidadãos é uma actividade regular. Por vezes realizadas em datas nacionais importantes, outras vezes sem qualquer data associada, as condecorações permitem ir distinguindo aqueles que se destacam, sem ter que chegar à atribuição do título de herói.
Entre nós as condecorações foram sempre coisa muito rara, mais excepção do que regra e até, por vezes, a reboque de outros países que condecoraram cidadãos moçambicanos.
Um alargamento desse tipo de distinção iria aliviar, muito provavelmente, a pressão sobre o título de herói nacional, na prática a única distinção que Moçambique reserva hoje aos seus cidadãos.
SAVANA - 17.02.2006