Rafael Marques é um angolano de coragem, que costuma dizer
publicamente aquilo que muitas outras pessoas pensam, sem se
atreverem a fazê-lo. Por causa disso, já foi condenado nos tribunais angolanos e já esteve preso. Em retaliação por um texto que escreveu contra o Presidente da República, denunciando a corrupção no poder.
Neste momento reside em Londres.
Cabo Verde é um bom exemplo de democracia e de tolerância para os países lusófonos. Tem demonstrado grande maturidade política, tendo experimentado a alternância de poder de forma exemplar. Neste sentido, Angola é o pior exemplo.
Depois da conquista da paz, a voracidade em concentrar todos os poderes reais e imaginários na figura do Presidente da República aumentou. Assumiu-se o statu quo como democracia, e a ausência de transparência é cada vez mais visível, com o Tribunal de Contas a condenar dirigentes a devolverem o dinheiro roubado e estes a manterem os cargos com a protecção de José Eduardo dos Santos. Essa prática terá consequências graves para a classe dirigente...
Que tipo de consequências?
Os dirigentes angolanos têm medo de ser julgados. Quer por via eleitoral, quer pela via judicial. Por causa da corrupção, do saque dos bens públicos, das mortes e da destruição que carregam nos ombros. Há uma longa história de abusos de poder e de violação dos direitos do homem. No fundo, os dirigentes do MPLA têm medo da justiça.
Neste momento, o Presidente, que tem muito mais contas a prestar do que o MPLA, é quem mais teme ser julgado pela vontade popular.
A UNITA também entrou nesse jogo do "empurra-empurra" porque os seus dirigentes, ou pelo menos uma parte deles, beneficiam da confusão. Enquanto esta situação durar, eles também não têm de responder pelos abusos que cometeram.
O Presidente anunciou, há dias, que não haveria eleições sem que antes sejam reabilitados os caminhos--de-ferro e as estradas. Essa desculpa esfarrapada indicia claramente que não haverá eleições tão cedo e que as mesmas correm o risco de ser adiadas ad eternum.
Só há uma forma as populações acabarão por organizar o seu descontentamento, face às mentiras e à falta de alternativas políticas, sociais e económicas. Só uma minoria, que faz ouvidos de mercador, continua a beneficiar da paz, dos recursos e potencialidades do país.
Ao longo destes anos, o Presidente José Eduardo dos Santos conseguiu, com os seus actos e omissões, destruir as estruturas intermédias do país. Os ministros não têm poder real, o primeiro-ministro só existe para ser achincalhado pela imprensa privada, e a oposição é um deserto. O frente-a-frente começa a desenhar-se entre José Eduardo dos Santos e o povo. Se Jonas Savimbi foi um obstáculo à paz, José Eduardo dos Santos é, sem dúvida, o maior obstáculo à democracia em Angola.
O Presidente não tem muitas saídas. O seu partido, o MPLA, anda às apalpadelas porque não conseguiu demarcar-se de José Eduardo dos Santos, perdendo a oportunidade de se democratizar e, com isso, de democratizar o país. Além disso, se José Eduardo dos Santos deixar o poder para onde é que ele vai? Quem é que o quer, sem as garantias de petróleo, diamantes e outras oportunidades de negócio de que dispõe enquanto Presidente de Angola? Onde é que ele se sentirá seguro? Haverá algum país que o queira acolher? Ele despreza o povo e, por essa razão, não se sentiria tranquilo em Angola.
Os outros Estados olham muito para Angola, onde existem comunidades importantes de cabo-verdianos, são-tomenses e não só. Além disso, Angola é uma referência no mundo lusófono. Ou é vista como tal. Pelo seu peso, pela sua dimensão geopolítica, pelas suas riquezas. É por isso que o exemplo de Angola é muito importante o que ali for feito de bom, ou de mau, será sempre relevante. Por isso, é perfeitamente normal que Angola influencie os outros Estados e que as pessoas acompanhem de perto o que ali está a acontecer.
Podemos sempre discutir ou discordar. Mas a Guiné-Bissau conseguiu, apesar dos seus fracos recursos, organizar eleições e escolher livremente quem queria para presidente. Angola, não. O Presidente não impulsiona nenhuma mudança, sente-se acossado e a sociedade ainda não reagiu porque também está marcada pelos abusos de poder, pela corrupção e pelo deixa andar. Por isso, há um pouco a ideia de que estão todos à espera que a fruta amadureça e que caia de podre.
Creio que sim. Até porque uma Angola estável e democrática teria reflexos muito positivos para Portugal. Quer em termos de negócios, que seriam mais transparentes, quer em termos de retorno, para Angola, de milhares de compatriotas.
Há espaço para isso desde que se privilegie o diálogo, acabando com aquilo que costuma vigorar o poder absoluto de uma só pessoa, o fanatismo dos que o seguem e o oportunismo dos que lucram com o desgoverno e suas arbitrariedades.
Exactamente. O Presidente tem procurado legitimidade internacional, como forma de contornar a legitimidade que nunca teve do povo angolano. Mas o que se vê a nível internacional é que já há poucos países disponíveis para o receberem como Chefe de Estado. Ele tornou-se numa espécie de incómodo internacional, como Mobutu ou Savimbi. A este acusavam-no sempre de obsessão pelo poder. E José Eduardo dos Santos? Os 27 anos de poder não lhe bastam? Se não fosse por obsessão pelo poder, porque arriscaria a sua reforma? A possibilidade de gozar a sua fortuna e sair do poder em paz?
José Eduardo dos Santos deu três hipóteses a Jonas Savimbi rendição, exílio ou morte. Hoje, creio, ele próprio, ao recusar um período negociado de transição, criou apenas duas estradas, ou melhor, duas saídas para si.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS - 12.02.2006