MOÇAMBIQUIZANDO... Logo eu?
Em Moçambique entra-se pelo Índico... disse-me há dias um homem de olhos cor de pátria antiga, percorrido por pérolas de vegetação nas palavras sérias...
Eu disse-lhe, assim calado como um pássaro sentado aos pés de uma pedra, que costumo entrar pelo ar dentro das pessoas, indo com elas em barcaças frágeis, digo que isso são afectos ou talvez quem sabe é apenas uma arte, a de respirar?... Entrei em Moçambique, disse eu com meu ar de pedra aos pés de uma ave, pelos olhos do Delmar, o poeta, aquele que ali está, kanimambo vida que mo trouxe aos meus sentidos...
Eu que já estive em África, que tenho uma irmã que nasceu em África, sei tão pouco, nada de África... O que sei de Moçambique? Que me disseram para nele entrar pelo Indico e eu estou nele pelo sentir, que tem uma das campanhas mais bonitas de que ouvi falar, aquela de transformar armas em enxadas (ai quem me dera que no meu país as armas não estivessem tão apontadas e as enxadas dessem o pão a cada um e a todos um poema pão e o pão dos poemas fosse a nossa enxada, a nossa arma...).
E de repente, aqui me põem, as nuvens à cabeça, escrevendo sobre um livro que tem África no sangue brando... Depois, descubro com facilidade: isto tem a ver comigo... A poesia é mestiça, pois não há palavra negra nem vocábulo branco, nem se faz de cores primárias as palavras almas dos poetas... Depois há esta doçura de falar poetizando, no poetiz Delmar — o mesmo que quando me fala parece dizer: olha que tenho medo de dar um grito abafado —; e ao mesmo tempo, há uma tão estonteante e sábia crítica, uma agressividade que nunca comete agressão, uma exaltação que nunca é raiva, uma apreciação que é mais discernimento, uma pátria a bulir por dentro que não contém uma só fronteira...
A poesia é mestiça, irmã! Vê bem o que é isto, irmão, olha o poema que é de cor em cor! Não quero falar do livro, lá dentro, o livro que nos ficará cá dentro, sou como os makondes que sabem que havendo uma aura de mistério e segredo rodeando a preparação das máscaras e a dança propriamente dita, sendo por exemplo importante que não se saiba a identidade do dançarino, todos querem ficar para descobrir. Oxalá que sejam muitos os que querem ficar nestes poemas, com estes poemas. E que fique eu calado como um pássaro sentado aos pés de uma pedra, a entrar pelo ar dentro das pessoas, para que seja o poema a ouvir-se e não o amigo que aqui o apresenta...
Alexandre Honrado
Monólogo de um Mestiço
O bode expiatório
Porque teria
de preocupar-me
com os mestiços?
Não serão eles
tão racistas como os negros?
E se, não são como estes
o que importa, se são
igualmente tão racistas
como os brancos?
Não serão eles os mais
revoltados que estão contra
tudo e contra todos?
Que confiança poderia
Depositar numa mente híbrida?
Que sociedade teria
espaço para um banido?
Já percebi a raiz de todo o mal!
Já percebi o porquê
de tanto sofrimento nestas sociedades!
E por isso vos peço, por favor
brancos e negros!
Decretem o fim dos mestiços
Promulguem e aprovem a lei
anti-mestiçagem!
Mas céus! Não sem antes
exterminarem os seus criadores!
Para que então a morte
seja justa.
Afinal, não é tão
importante moralizar
a morte nestas sociedades?
Lisboa / Madoma, 23 de Outubro de 2001
Inédito
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