Não basta descrever a beleza da marginal de Luanda. Era preciso dizer que 70% do nosso povo (sobre)vive na miséria
Os jornalistas portugueses, bem como os políticos e demais membros da comitiva que acompanhou o primeiro-ministro José Sócrates na visita a Angola não sujaram os sapatos para ver, in loco, os nossos descalços e famintos cidadãos. Ficaram, contudo, com a alma bem suja. Se é que a têm. Sócrates correu na marginal de Luanda, comeu e bebeu do melhor, conheceu a parte dos poucos que têm muitos milhões. E o povo? E os muitos milhões que têm pouco ou nada? Que os políticos e empresários portugueses assim se comportem, ainda vá que não vá. São todos iguais. Mas então os jornalistas? Desses, nós – o povo angolano, esperávamos muito, muito mais.
Por Jorge Castro
Os políticos portugueses escudam-se nas relações Estado/Estado para, impávidos e serenos, justificarem que não podem hostilizar quem dirige Angola. Comem bem e calam ainda melhor. Esquecem-se, contudo, que Angola actual não é um Estado mas, apenas, um reino do senhor José Eduardo dos Santos onde ele faz o que quer sem prestar contas.
Que os políticos portugueses comam bem e calem ainda melhor, é aceitável embora revele uma cobardia pouco digna de um Estado democrático e de direito. A comitiva de José Sócrates não veio a Angola para conhecer o país real e, por isso, o povo aparece nas preocupações de Lisboa logo a seguir ao último ponto da agenda.
Espanta-nos, contudo, que os jornalistas também façam parte da mesma panela e, com algumas muito raras excepções, se limitem a ser reprodutores dos interesses instalados (muitos deles paridos nas mais vis latrinas) e do que os políticos querem que eles digam. Será uma mera questão de subsistência? Será porque, afinal, o jornalismo português é mesmo assim?
Ainda queremos nós, pobres inocentes, aprender com os jornalistas portugueses. Aprender o quê? A ocultar a verdade? A ser correia de transmissão dos poderes instalados? A ficar nos melhores hotéis e a tapar os olhos perante a realidade que está na rua ao lado? A falar da árvore esquecendo a floresta? A descrever a beleza da marginal de Luanda e a esquecer que 70% do nosso povo (sobre)vive na miséria?
É claro que Angola precisa de investidores. Por isso cá vieram empresários de todo o tipo, dispostos a ajudar a nossa economia, seja pelo crédito assegurado pelo Governo de Lisboa, seja pelo petróleo de Cabinda. É a função deles.
É claro que Angola precisa de intercâmbio político. Por isso cá vieram políticos e governantes, dispostos, neste caso, a ajudar a perpetuar a elite que está no poder. É, se é que é, a função deles.
É claro que Angola precisa de ser notícia. Por isso cá vieram jornalistas dispostos a contar o quê? Esperávamos nós que fosse a verdade sobre o país. E essa só em parte foi revelada. Contaram que o país está a crescer, que a economia está pujante, que os empresários querem investir. Faltou, contudo, o outro lado. Faltou falar do povo. Desse povo que está na miséria, das crianças que são geradas com fome, nascem com fome e morrem com fome. Esta também é, ou deveria ser, a função deles.
Aliás, não era preciso muito esforço para ver essa realidade. Mesmo que não quisessem sujar os sapatos nas lixeiras onde sobrevivem as nossas crianças, bastaria olhar à volta dos hotéis. Era tão simples...
NOTÍCIAS LUSÓFONAS - 10.04.2006