Espinhas
Por Fernando Lima
Na presidência que há uns tempos terminou, evitava-se falar em certas figuras. Contradição pura, uma vez que é associado a Chissano - e ao partido maior da oposição - o clima de grandes liberdades formais de que beneficiaram os cidadãos a partir dos anos 90.
Mesmo assim, e exactamente para provar o contrário, uns tantos foram para a prisão e para o banco dos réus, acusados de um golpe que nunca existiu, a não ser na cultura revanchista do "rei morto, rei posto". Bem presente, aliás, nos tempos conturbados que perpassam a república de hoje.
E é muitas vezes nestas ocasiões que lembra o Aquino de Bragança, aquilo a que os francófonos chamam de "blagueur", sempre com uma resposta, um fio de pensamento para as crises e as encruzilhadas.
Os seus detractores consideravam-no um cortesão intriguista e adulador, um pensador menor que terá caído nas boas graças de Samora. E nos meses pesados que antecederam o Outubro trágico, era muitas vezes irrespirável a atmosfera entre a Julius Nyerere e a Ponta Vermelha.
Aquino não era um assíduo de tais salões. Estava lá, às vezes.
Preocupavam-no outras coisas, como o Centro de Estudos Africanos. Nos anos a seguir à independência, fez descer de Makerere e de Dar-es-Salaam parte da academia algo incómoda às elites a preto e branco que se iam sedimentando a norte. O mesmo que acabou por acontecer em Maputo quando os "marxistas" em curso acelerado "made in RDA", acolitados à ortodoxia bolorenta intrincheirada no Comité Central, ganharam o braço de ferro com Aquino, Ruth First e um punhado questionadores permanentes das lutas de libertação e dos processos de desenvolvimento. Quando não era ainda o FMI que dava as cartas e ficava com o rei de espadas.
Aquino sentia o bote à distância, mas não dava o peito. Preferia o "lobby" que fizesse acontecer a conjuntura certa.
Aquando do "golpe" no "Notícias" em Setembro de 1976, que transformou em director editorial o secretário do grupo dinamizador da FRELIMO, Aquino manteve-se imperturbável. O cinzentismo que tomou de assalto o jornal foi impiedosamente vergastado nas barbas de Jorge Rebelo, a mão do partido nos media, que, maquiavelicamente os haveria de fazer cair sem glória algum tempo mais tarde. Um episódio obviamente ignorado pela recente "reconstrucção" revisionista das glórias do matutino, fiel servidor da União Nacional e do partido único.
Aquino previu os golpes e contra-golpes. No "Notícias", na "Tempo". Não era um impaciente. Insistia sempre que era preciso ouvir. Ouvir muito, falar muito com os protagonistas. Como quando dizia que nunca se compreenderia Angola se não tivesse uma conversa profunda com Lúcio Lara e Iko Carreira.
Em Nova Deli, quase dez anos depois da independência, Samora, com Aquino ao lado, disse a Indira Gandhi que a Índia de Neru tinha contribuído para o começo do fim do império português. Dias depois, em Goa, Aquino estava mais céptico do que nunca sobre os rumos que tomaram os antigos territórios
portugueses na Índia.
Para o Aquino a história não se faz naquele papel de quadradinhos que hoje foi substituído pelas folhas de cálculo digitalizadas.
Em Bissau, em 1980, ouviu longamente as recriminações de Nino Vieira contra Luís Cabral. Ele que viveu por dentro os dias turbulentos posteriores ao assassinato de Amílcar Cabral. Nunca veio dele nenhum dedo acusador. Aquino, sem o achar muito entendido nos submundos das devoções yorubas e baianas, tinha sempre o sentido de pensar positivo, de dar a volta por cima. Às vezes, punha um ar profético, acariciava o ventre rotundo e alvitrava que, nos momentos de crise, o movimento de libertação sempre conseguiu encontrar saídas para a crise. E citava exemplos.
As soluções, sabemo-lo, somos nós os vivos que temos de tocar o barco para a frente.
Mas não deixa de dar aquele aperto mais emocional, quando lembro as conversas sem agenda com o Aquino e o Fernando Honwana.
Mesmo 20 anos depois, ainda custa.
SAVANA - 16.06.2006