Meu caro António
Lembrei-me de ti hoje e estou-te a escrever por causa disso. Lembrei-me de como eras um seguidor entusiástico do marxismo à moda chinesa, de como andavas com o fato à Mao Tsé Tung (nessa altura ainda se não dizia Maozedong...) e com aquele boné tão típico, sempre com o livrinho vermelho dos
pensamentos do Grande Timoneiro no bolso, pronto a sair para nos leres alguma passagem.
E lembrei-me desse tempo ao ler mais umas tantas notícias sobre a ofensiva político-económica que a
China está a fazer no nosso país.
Outrora um país completamente fechado sobre si próprio, a moderna China virou-se para o exterior e
está cada vez mais presente em todo o lado.
Só em Moçambique, e estou a citar de memória, tem investimentos previstos no Vele do Zambeze, entre
os quais o financiamento para a barragem de Mpanda Ncua, fez a reabilitação do edifício da Assembleia da República, construiu, de raiz, o do Ministério dos Negócios Estrangeiros, já fornece camiões, está a
fornecer autocarros para as nossas cidades e é candidata à reabilitação dos principais aeroportos.
Mas não é só entre nós que se nota esta presença forte. Por toda a África se encontram cada vez mais
chineses, individualmente ou através de empresas que concorrem a projectos. E os ganham, normalmente, porque os seus preços são, em geral, imbatíveis.
Há quem diga que os preços são imbatíveis por a China usar, nesses projectos, mão-de-obra quase
escrava, constituída por presos retirados das suas cadeias. Não sei se isso é verdade, mas é uma história que circula muito por aí.
No entanto, o facto é que eles aparecem, mostram as suas possibilidades e ganham as empreitadas.
E não se metem nas políticas locais. Ou metem-se da forma mais positiva para os dirigentes do país
onde se querem instalar. Apoiam quem está no poder, para colherem, a seguir, os benefícios desse apoio.
Se vão ao Sudão não se preocupam com a questão de Darfur. Tratam de vender o que têm para vender
e comprar o que têm para comprar.
No Zimbàbué fazem o mesmo, sem quererem saber se a política de Robert Mugabe é a melhor para o seu país, e para a região, ou não. Negócio é negócio e o resto não é com eles.
Mesmo na Europa a presença chinesa é cada vez mais sentida. Em cidades como Lisboa as lojas de
artigos chineses aparecem por todo o lado. Artigos tão baratos que compensam mesmo a má qualidade
de muitos deles. O preço de um martelo, por exemplo, é tão baixo que dá para o usar um tempo, até ele se partir, e ir comprar outro à mesma loja para usar mais algum tempo.
A questão dos têxteis é outro dos pontos fortes da China. E aqui, normalmente, nem se fala de baixa
qualidade. Fala-se é de preços muito baixos para produtos de qualidade equivalente à concorrência. E
isso rebenta com os produtores de muitas partes do mundo, que não conseguem competir.
Quando eu era miúdo (ao tempo que isso já lá vai...) falava-se muito do “perigo amarelo”. A ideia era que os chineses já eram muitos, nessa altura, e a sua população continuava a crescer de forma
aparentemente incontrolável, o que faria com que a China se viesse a tornar agressiva, a curto prazo,
como forma de conseguir território para albergar essa população crescente.
Imaginava-se que os chineses iriam invadir o resto do mundo, de armas na mão, em legiões e legiões de
soldados amarelos avançando por cima das fronteiras.
Hoje, com o problema do crescimento populacional em grande parte resolvido, a China voltou a surgir de forma agressiva, passando as fronteiras. Só que não vem de armas na mão. Traz sim catálogos dos
seus produtos e projectos de cooperação irrecusáveis.
É um novo “perigo amarelo” para muitas economias. Para outras, como a nossa, pode ser um importante contributo para o crescimento económico.
Oxalá saibamos aproveitá-lo, no que tem de bom, sem nos deixarmos engolir.
Porque, não o esqueçamos, quase todos os invasores começaram por chegar, com pezinhos de lã,
fazendo comércio com a gente da terra.
E depois foi o que se viu.
É verdade que ainda estamos no princípio desta aproximação e dela só estamos a beneficiar.
O que é bom.
Mas, dizia a minha avó, cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.
Um abraço para ti, meu caro António António, deste teu amigo
CORREIO DA MANHÃ(Maputo) - 22.06.2006