DUVIDO que haja aqui quem não conheça Mia Couto: jornalista a tempo inteiro até meados da década de oitenta, depois professor universitário, biólogo durante o dia e escritor em muitas das suas noites, como costuma dizer. Escreveu já poesia, contos, novelas e romances, para além das imensas crónicas e textos de opinião que publicou na Imprensa e em livro.
Várias das suas obras foram premiadas, e "Terra Sonâmbula" foi considerada um dos 12 melhores livros africanos do século XX. É estudado mundo fora em muitas universidades, e está traduzido em mais de vinte línguas, como o inglês, o francês, o alemão, o grego, o sueco, o hebraico, o espanhol e o croático, para citar apenas algumas. É, sem dúvida, o escritor moçambicano mais conhecido no estrangeiro, e, tanto por via das suas obras, como pessoalmente, um importante difusor da história e da cultura, das lutas, das preocupações e dos anseios do povo moçambicano dentro e fora das nossas fronteiras. Em 1983, surpreendia-nos Mia Couto com o seu primeiro livro: "Raiz de Orvalho", um conjunto de poemas líricos, de carácter intimista e falando de amor, contrariando a tendência panfletária da época. Depois, assombrou-nos com "Vozes Anoitecidas", levantando polémica nos meios literários e políticos, mas despertando grandes paixões. Daí em diante, não mais parou. Mia Couto, sempre ele próprio: aquele que com poesia e magia, humor e ironia, e partilhando connosco o prazer de trabalhar a língua para a tornar mais expressiva, nos foi fazendo reflectir sobre nós próprios, sonhar e voar mais alto ou reconhecer as nossas feridas e procurar formas de as sarar. O Mia que nos falou das vozes que não tinham voz, dos tempos tristes da guerra e da chuva que abençoou a paz.
O Mia que corajosamente vem apontando os males que vieram depois e que impedem um progresso mais rápido do nosso país. O "Outro Pé da Sereia" é já o seu 19° livro e, com uma estrutura complexa e desenvolvendo velhas e novas linhas temáticas, não deixa de nos surpreender. O que agora temos é um Mia Couto a quem, muito mais do que o efeito da (re)criação de uma linguagem - que para muitos é a sua imagem de marca -, o que interessa é a história em si, as personagens presentes ou evocadas, as relações que se estabelecem e a forte carga simbólica que em tudo investe. Um Mia Couto que, deixando intencionalmente margens de intervenção ao leitor, exige de nós um papel mais activo para que a história aconteça em toda a sua plenitude.
O "Outro Pé da Sereia" é como a caixa de sândalo que abrimos e tem outras caixas com muitas caixinhas: uma só narrativa com duas histórias que comportam em si muitas outras histórias. Demarcada nesta primeira edição pela diferente cor do papel, uma das duas histórias maiores remonta ao século XVI. Traz o padre jesuíta Gonçalo da Silveira de Goa para Moçambique com a missão de converter ao cristianismo o imperador do Monomutapa. A missão é cumprida, mas Gonçalo é assassinado pouco depois. Desse tempo temos um outro padre, tentado a ser convertido mais do que a converter, senhores e escravos. A outra grande história é do presente, no século XXI, e cobre também parte da zona do antigo império. Nela encontramos homens e mulheres comuns do nosso quotidiano e estrangeiros em busca de uma África que apenas imaginam.
No conjunto da obra, viagens diversas cruzam-se, no tempo e no espaço, raças, culturas, religiões e destinos de africanos, indianos, portugueses e outros, remetendo-nos para as suas origens e, sobretudo, para as suas crenças e fantasmas, para o íntimo de cada um.
Zero Madzero
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Toda a intriga é desencadeada por este episódio que decorre em 2002, algures no Vale do Zambeze, próximo do antigamente, onde vivia Zero Madzero:
"Enquanto apressava o regresso à casa, Zero Madzero ergueu os olhos para a noite como se nela procurasse o chão. De repente, o pastor se arrepiou: um ruidoso fogo rasgou os céus como um chicote de luz. Parecia um fósforo a ser aceso pelas mãos de Deus. Depois, foi a explosão. Madzero se apeou da alma, tal o susto. Parecia que o universo todo se estilhaçara. Sem pisar nem pesar, o pastor se ajoelhou. Seus lábios imploraram:
- Me salve, meu Deus! E acrescentou, em célere sussurro: E me acudam os meus deuses, também...
Fosse há uma dezena de anos e o pastor estaria seguro de que se tratava de um acto de guerra. Mas agora, era impossível. A guerra era coisa do passado e o tempo varrera as cinzas e levara as lembranças.
Decorreram viscosos instantes, enquanto o mundo reganhou ordem e silêncio. O burriqueiro viu, longe, uma silhueta ainda incandescente, afocinhada nas areias. E concluiu tratar-se de uma estrela-cadente. Ela se despenhara ali, com propósitos que ainda se iriam descortinar."
Madzero pega naquilo que julga ser uma estrela e decide enterrá-la no seu quintal. Mwadia Malunga vê o marido ameaçado e considera melhor transportar o objecto para o bosque sagrado, depois de consultarem o feiticeiro Lázaro Vivo. Enterrada a estrela em lugar apropriado, junto ao rio Muzenguezi, é Mwadia quem faz uma nova descoberta. Ali mesmo, entre os verdes do bosque, estão uma estátua de madeira de Nossa Senhora com um pé quebrado, ossadas, que são afinal as de Gonçalo da Silveira, e um baú apodrecido contendo documentos. Nova caminhada se impõe para salvar o marido: levar a santa para um lugar seguro, que para Madzero só pode ser uma igreja em Vila Longe, terra natal de Mwadia, de onde ele tinha sido banido.
Zero Madzero está morto, mas continua presente no mundo dos vivos, principalmente agindo sobre Mwadia Malunga, que muito o amara. Dessa outra margem o mundo dos mortos o espírito de Gonçalo da Silveira, o falecido de séculos que ali ficaria para sempre, procurando vingança, cheirando as vidas dos vivos como um cachorro esfaimado. Destinadas a ligar os retalhos do tempo e da história, Mwadia, a que tinha nome de canoa e corpo de rio (mwadia é como se designa canoa na língua cinyungwe), e a estátua da mulher branca de pé decepado, vista por uns como Nossa Senhora, por outros como Kianda ou Nzuzu, a deusa ou o espírito das águas.
O tempo e a história, a vida e a morte, os grandes temas de sempre de Mia Couto: o que somos, o que se apaga e o que fica de cada um de nós e da nossa história comum, verdadeira na essência, transgredida na aparência, De sempre também as fluidas fronteiras que nos permitem transitar entre o acontecido e o sonho, a realidade e a ilusão, a lucidez e a loucura. Frágeis fronteiras de vidro como já lhes chamou Gilberto Matusse.
As intenções desta obra, no entanto, ressaltam bem claras: questionar preconceitos e ideias feitas na imagem que por vezes temos ou damos de nós e dos outros, de África e da sua história, e essencialmente mostrar que todos, mesmo sem o sabermos, somos resultado de diversas misturas, da combinação de diferentes universos e experiências.
"Como escritor, a nação que me interessa é a alma humana. Escrevi um livro a que chamei 'Cada homem é uma raça'. Agora, vos posso dizer: Cada pessoa é uma nação". Isto afirmou já Mia Couto. Com este novo livro a mensagem que deixa transparecer parece ser esta: Cada pessoa é um mundo complexo em que se fundem ou se repartem várias nações.
FÁTIMA RIBEIRO - Linguista/Parte do texto lido na apresentação do livro no Centro Cultural do Banco de Moçambique
NOTÍCIAS - 22.06.2006