"Mas chefe.
fiz quê então?"
Luanda - "Camarada chefe eu não quero morrer! Eu não fiz nada, contra o camarada presidente Neto", este era o grito dum menino, na flor da sua tenra e ingénua idade, a implorar aos seus algozes, para que abrissem as grilhetas da morte que o acorrentavam cobardemente.
-"Eu não fiz nada, juro por tudo quanto é mais sagrado".
-Cala a boca seu filho da puta, querias matar o camarada presidente e agora vais morrer que nem kandimba. E cala já essa boca, que me estás a irritar com estes gritos de feiticeiro fantoche..
A voz rouca e truncada era do todo poderoso Mainga, chefe do maior campo de morte, criado por Agostinho Neto e a sua entourage, para assassinarem milhares de vidas humanas, que apenas reclamavam por mais diálogo interno, nas estruturas do partido. E pedia de joelhos o menino:
-"Mas chefe. eu mesmo, uma criança, fiz quê então"?
O seu crime foi não ter feito nada, como milhares de outros, que sem julgamento foram enterrados vivos ou fuzilados como se fossem pombos.
Esse menino, tinha, na altura, 15 anos de idade e chamava-se António Ambriz.
Foi cobardemente assassinado com mais de dois carregadores de AK, por alegadamente, segundo os seus assassinos, não ter ovacionado como devia num comício.
Melhor, os seus vivas ao camarada Neto, "guia da revolução angolana" e os abaixo aos fraccionistas, foram considerados como gritos muito baixos e nada empolgantes.
Assim se matava em 1977, porque a vida humana não tinha valor, pelos algozes sedentos de sangue das suas vitimas. Não havia fronteiras entre o racional e o irracional. E tanto assim é que até hoje, volvidos 29 anos, determinados sectores e dirigentes do MPLA e do seu governo, não aceitam sequer autorizar a exumação do menino António Ambriz e dos outros milhares, enterrados nos campos e valas comuns do Moxico e de todos os locais de tortura, plantados por esta Angola fora.
Não há paralelo da barbárie cometida em 1977 e ela, tal como os crimes dos nazistas hitlerianos, não pode prescrever, discricionariamente, por vontade dos algozes. Porquê?
Porque vamos desembarcar no maior campo de morte de Angola, criado no tempo de Agostinho Neto, que viria a ser considerado como "homem profundamente humano e guia imortal da revolução".
"Viva, viva Kalunda tem entrada não tem saída, Kalunda..Viva, viva Kalunda, tem entrada não tem saída Kalunda".
Este era o enredo, melhor o refrão mais emblemático do cântico da morte, criado para que todos desembarcados naquela paragem tivessem a noção da sua insignificância.Kalunda não era uma cidade, vila, aglomeração ou kimbo, era um campo de concentração concebido para ser campo de morte, por homens que, levados pela loucura do poder, reinventaram a morte como meio de sobrevivência. A loucura desses homens, tolhidos pelo medo de serem executados pelos seus irmãos se não se mostrassem firmes e decididamente cruéis, levou-os a ultrapassar todos os limites de crueldade imagináveis, para, talvez no fundo, se sentirem um pouco mais longe do que eles consideravam ser o seu próprio fim, nas mão de algozes com quem eles se confundiam.
A morte estava presente por toda a parte, como uma ameaça irredutível, invisível e impossível de localizar. Não matar era já estar mais perto dela.
Estavam ali, no Kalunda, à espera das suas vítimas. Tinham ordens para matar.
De Luanda, ao longo de mais de um ano, avançaram de rota batida para o campo de Kalunda, na província do Moxico, cerca de 15.000 almas, maioritariamente homens políticos e militares, todos, absolutamente todos do MPLA, a que se tinham involuntariamente juntado alguns membros da JMPLA.
Galgavam a distância de mais de 800 quilómetros que separava a capital do terminus de todas as coisas, para a maior parte deles da viagem e da própria vida, em cima de camionetas.
Era um apinhado de gente faminta e sem a mínima noção de para onde iam.
Quase todos, para não dizer todos, sem mesmo saberem por que razão ali estavam. Viajar de borla?... Nada tinha sentido.
Longa rota, fome sede, angústia e desespero, era o que os esperava ao longo da estrada. Alguns, apesar de todas as cautelas dos esbirros, conseguiam fugir, apenas da hora da morte, outros, tentavam, mas eram abatidos como coelhos, a tiro de espingarda ou de metralhadora, outros ainda iam aos poucos morrendo pelo caminho.
A chegada ao campo de Kalunda era como que uma libertação do inferno que eles tinham acabado de viver, mal eles sabiam que a estrada apenas tinha sido um purgatório e que o inferno estava ali, diante deles.
À maneira alemã, da guerra de 1940-1945, ali estavam os arames farpados, as altas guaritas, os homens a postos, prontos a matar, a ausência absoluta de qualquer tipo de humanismo.
Por trás dos arames farpados, os dormitórios e a cantina, a cozinha, a sanita ao ar livre, o cheiro nauseabundo dos esgotos misturado com o odor forte de cadáveres em decomposição.
Depois, um pouco separado do resto do campo, a casota do chefe de campo e do seu adjunto, que dispunham, naquele espaço reservado aos fraccionistas de Luanda, de poder sobre eles de vida e de morte.A vida no Campo de Kalunda já não se podia dizer que era realmente viver. Era antes uma espécie de espera que o dia passe (um a menos a passar) e chegue a noite com o seu único momento de abandono, o sono.Os reclusos nem direito de satisfazer as suas necessidades vitais tinham.
Eram obrigados a pedir licença para tudo. As matanças eram diárias, e os "eleitos" contavam-se por dezenas."Ei, fantoches parem e cavem uma vala", diziam os assassinos.A ordem era cumprida, mesmo na fragilidade dos braços e na sua conclusão o inevitável. Mainga e João Negro apontavam o dedo inquisidor, "tu, tu e tu e.e.tu.entrem pró buraco".
Depois como uma máquina trituradora, os ainda vivos tratavam de deitar terra para cima dos seus camaradas vivos, que clamavam perdão a quem impotente nada podia fazer a não ser cumprir ordens de continuar a mandar areia para cima dos seus canoas que respiravam e tinham uma vontade grande de viver.
Fonte: Folha8 - 27.05.2006
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