O desmancha-prazeres
VISÃO nº 692 8 Jun. 2006
Dele, não se esperem concessões. Cavalgando a onda patriótica, dava o maior jeito revelar que é de um português o conceito. Joga bonito, a partir do qual a Nike construiu toda a sua campanha publicitária para o Mundial de futebol da Alemanha, ilustrada por craques como o brasileiro Ronaldinho, o francês Thierry Henry, o inglês Wayne Rooney ou Cristiano Ronaldo. Mas José Ricardo Cabaço, 41 anos, embora de ascendência lusa, considera-se irredutivelmente moçambicano – para irritação (quase) geral dos seus pares portugueses, que não lhe suportam a alegada blague.
Ver-se-á que o assunto tem muito mais que se lhe diga. E só assim é pela importância da personagem – instalado na cidade norte-americana de Portland, José Ricardo ocupa hoje um lugar de topo na direcção criativa da publicidade da Nike. Em Portugal, deixou vasta obra. Começou na profissão em 1989 e, três anos depois, já arrecadava, em parceria com Edson Athaíde, o primeiro «Leão» nacional no Festival de Cannes, com um anúncio contra o turismo na Indonésia (uma metáfora feita a partir de duas metades de uma laranja, que acabava num vistoso cocktail), que ajudou a ampliar internacionalmente o drama da ocupação de Timor-Leste. Ainda em 1992, também em dupla com Athaíde, saiu-lhe a campanha do vaporizador Nasex – popularíssima e inspirada na sua própria rinite crónica, que o obriga a falar pelo nariz.
Mais resumidos exemplos da sua assinatura, para encurtar razões: «Vá para fora cá dentro», «Conheça a fase negra de Michael Jackson» (para a Rádio Nostalgia), o jipe da Suzuki que amuava e não permitia que Maria Rueff entrasse nele, ou o guarda-redes Ricardo (esse mesmo, o da selecção nacional) a defender a qualidade da Lusiaves, durante a crise dos nitrofuranos, porque de frangos, dizia, percebe ele.
José Ricardo veio de Maputo (onde nasceu) para S. João do Estoril (Cascais) em 1983, oito anos após a independência de Moçambique. Tinha 18 anos, matriculou-se no IADE e licenciou-se em design industrial. Ainda exercitou o seu grande sonho – desenhar carros. Estava a trabalhar na 3.ª geração do jipe português UMM, dando-lhe formas curvas em vez de angulares, quando a fábrica faliu. Seguiu-se a publicidade, com os resultados conhecidos e uma impressionante rotatividade – passou por dezena e meia de agências, em algumas das quais saiu e voltou a entrar.
Em 2003, chegou a consagração internacional, ao ser convidado para o júri de filmes de Cannes – o primeiro publicitário de Portugal a receber tal honra. Nas vésperas do evento, dizia, numa entrevista: «Levamos muito lixo ao festival.» E assegurava uma posição de combate contra os «anúncios-fantasma», sobretudo portugueses, apenas feitos para o concurso. Só quem não o conhecia se espantou. «É muito contestatário – se há uma regra, ele está contra», define-o Edson Athaí-de, 40 anos, que lembra as «homéricas zangas» entre ambos, que acabavam invariavelmente com uma jura de paz. «Na cabeça do Zé Ricardo, o País era pequeno de mais para ele. E sempre se mostrou muito ambicioso – não foi à toa que chegou onde chegou.»
Em rigor, a vida do publicitário mudou por um acaso. Desde os 10 anos, tem em permanência por companheiro um pequeno caderno, onde despeja desenhos sobre tudo o que lhe passa pela cabeça, ouve ou observa. Numa pausa do visionamento de filmes em Cannes, esboçava uma ideia de um eventual logótipo da Nike para o Euro 2004 – um galo de Barcelos com o símbolo da marca norte-americana a fazer de asa. O presidente do júri, Dan Wieden, surpreendeu-o na distracção e pediu para ver o resto do caderno. No fim, disse-lhe: «Gostava de trabalhar contigo.» O convite partia do dono de uma superagência, a Wieden+Kennedy (W+K), amigo íntimo do fundador da Nike, Phil Knight, a tal ponto que ambas as empresas cresceram ligadas uma à outra.
«Estava no sítio certo à hora certa», diz José Ricardo, num intervalo de umas curtas e recentes férias em Lisboa. «Sempre tentei apanhar as campanhas da Nike em Portugal – e consegui. Mas ir para a W+K nem sequer fazia parte dos meus sonhos. Tinha a minha agência, a Home, acabada de se fundir com a norte-americana Grey.» Porém, o desafio foi reiterado e, um par de meses depois, o publicitário, divorciado e pai de dois filhos (Ana, hoje com 14 anos, e João Pedro, 13), partiu para a direcção criativa da Nike/Europa, no escritório de Amesterdão da W+K.
Da base holandesa, José Ricardo comandou maravilhas. Por exemplo, o anúncio The other game, que põe as selecções brasileira e portuguesa de futebol a jogar nos balneários, e Ronaldo e Figo a «picarem-se» no túnel de acesso ao relvado, até o árbitro, com um «corte de carrinho» sobre Ronaldinho Gaúcho, terminar com a brincadeira. A última imagem são os jogadores alinhados para o hino – cheios de mazelas. Ou o Home game, em que o francês Thierry Henry joga em casa com futebolistas imaginários, como o compatriota Makelele ou o sueco Ljungberg.
Hoje, José Ricardo está já na sede da W+K, em Portland – e recomenda-se. Encontra-se a uma hora da praia, onde faz surf, e da montanha, onde destila o stresse no snowboard e na bicicleta todo-o-terreno. Descreve-se, aliás, como um «workhaolic saudável», que sai de casa para se divertir com os amigos e, fundamental para ele, viaja muito. De resto, continua igual a si próprio. Numa reportagem da Shots, revista inglesa da especialidade, sobre o nosso mercado publicitário, foi, claro, veemente: «Portugal tem uma coisa bonita que é, ao mesmo tempo, um obstáculo ao talento, e nesse aspecto não me sinto português. Os portugueses estão absurdamente ligados ao seu clima, à sua família, à comida, à praia, ao vinho. Há lá um batalhão de gente talentosa que poderia fazer o mesmo que eu – mas não querem. Adoram o seu país, estão comprometidos com isso. Porquê sair? Para fazer o quê?»
Na blogosfera sucederam-se as reacções e um criativo português não esteve com meias palavras: «José Ricardo dá-me vómitos», escreveu. O alvo não se intimida. À VISÃO, reforça o que disse e acrescenta que os clientes nacionais «mostram uma série de medos e preconceitos, não deixam a espontaneidade funcionar, não têm uma observação muito realista da vida das pessoas – e a publicidade é demasiado cosmética». E as indignações? «Não as percebo. Tive a sorte de nascer em Moçambique, que era uma colónia portuguesa, falo português e a minha formação profissional foi feita em Portugal. Quem se chateia são sobretudo pessoas incompetentes e com pouco trabalho para apresentar.» Não lhe peçam o politicamente correcto. Nunca.