Feras, modo de usar
PUBLICO
30.7.06
JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
Comecemos pelo fim: "Já tive uma mãe e ela amava-me". É com esta frase que Uzodinma Iweala fecha o seu primeiro romance, "Beasts of no Nation". Uma frase que não se esquece. O sucesso do livro surpreendeu o autor, um jovem nigeriano de apenas 24 anos, que estudou literatura em Harvard, e vive actualmente entre Lagos e Washington.
Não acho surpreendente que um bom livro consiga um rápido sucesso. O que nunca deixa de me surpreender é o fulgurante sucesso de alguns maus livros. "Beasts of no Nation", que li na tradução de Christina Baum para a Nova Fronteira, com o título "Feras de Nenhum Lugar" é sem dúvida um bom livro. Ignoro se alguma editora portuguesa o tenciona publicar mas espero que sim, o mais cedo possível.
Uzodinma é uma das principais estrelas da Festa Literária de Parati (FLIP), o maior acontecimento literário do mundo de língua portuguesa, que principia no próximo dia nove de Agosto na belíssima cidade histórica situada a sul do Rio de Janeiro.
Criado no seio de uma família de classe média alta, em Washington, onde aliás nasceu, Uzodinma conseguiu construir um narrador convincente, nos antípodas da sua própria origem e condição — Agu, um menino pobre, que depois de sequestrado por um grupo de soldados de um país da África ocidental, nunca nomeado, se transforma num assassino.
Após o recomeço da guerra em Angola entrevistei crianças que haviam sido recentemente desmobilizadas pelo exército governamental angolano e pelas forças da guerrilha. Cheguei até elas através de Ana Filgueiras, uma mulher extraordinária, portuguesa sem fronteiras, que trabalhara com meninos de rua no Brasil, durante muitos anos, antes de se mudar para Angola. Ana entregou a dois destes meninos gravadores de cassetes com os quais eles percorriam os bairros de Luanda, a pé e de bicicleta, recolhendo depoimentos de antigos companheiros.
O objectivo, a publicação de um livro com os referidos depoimentos, não chegou infelizmente a ser concretizado devido ao abrupto regresso de Ana Filgueiras a Portugal - muito doente. Lembro-me de ter ficado impressionado não tanto com a naturalidade com que os meninos narravam as abominações da guerra, mas sobretudo com a ternura com que recordavam a infância roubada e, em particular, o amor dos pais.
"Já tive uma mãe e ela amava-me".
Um exército, qualquer exército, é no essencial uma máquina destinada a transformar jovens comuns em assassinos. "É fácil militarizar um civil", gostava de lembrar o poeta angolano Ernesto Lara Filho: "O
problema, depois, é como civilizar um militar".
"Não pense, diz o Tenente. Deixe acontecer. No momento que a gente pára pra pensar, a cabeça da gente fica que nem a parte de dentro de uma fruta podre, diz ele. O Comandante diz que é como se apaixonar. Você não consegue pensar sobre isso. Você só tem que fazer. Acredito nele. Que mais posso fazer? Todos dizem, pare de se preocupar. Logo vai ser a sua vez e você vai saber o que a gente sente quando mata alguém. Todos riem de mim e cospem no chão perto do meu pé".
Para transformar um jovem comum num assassino, portanto, começa por se lhe tira a mãe (a possibilidade de uma mãe) e depois o pensamento. Uniformizar também ajuda. O uniforme uniformiza. Uniformizar é despersonalizar. Em vez de um nome, um número.Quase todos os países africanos que alcançaram a independência através da luta armada viram-se envolvidos, pouco depois, em sangrentas guerras civis. Os mais estáveis e prósperos países de África, como o Botswana, Cabo Verde, ou a ilha Maurícia, são precisamente aqueles que não mataram para se libertarem. Matar não liberta ninguém.
"Então o Comandante me chama, Agu. Venha cá agora. Diz para o chefe dos inimigos se ajoelhar,
apesar do homem já estar ajoelhado e vomitando. Fico em pé no meu lugar. Não quero matar ninguém hoje. Não quero matar ninguém nunca. (...) Mata ele, diz o Comandante no meu ouvido e levanta minha mão com o facão bem alto. Mata. (...) Segura minha mão e abaixa ela com força na cabeça do inimigo, e sinto como se uma corrente eléctrica atravessasse o meu corpo todo". O horror! O horror! Sim, o horror! A realidade é sempre muito pior.