Cuidado: esta porta abre para o medo
PUBLICO - 27.8.06
JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
Assisti pela televisão, no aeroporto de Heathrow, ao desvio de um avião inglês, de Washington para Boston, devido a uma confusa ameaça terrorista — ou antes: ao medo. Também assisti, enquanto aguardava a minha vez de ser revistado, progredindo a custo numa imensa bicha serpenteante, ao desembarque de mais imigrantes africanos nas praias de Tenerife. Mergulhado entre o rumor ansioso da multidão eu pensava na minha casa. É bom ter uma casa. Saber que em algum lugar ela nos aguarda, com a sua luz lavada, os livros que amamos, a cama onde dormimos.
Aqueles imigrantes, homens, mulheres e crianças, não têm uma casa.
Se algum dia a tiveram, abdicaram dela. O que procuram? O que os leva a abandonar a família, os amigos, o conforto da sua língua e tradições, enfim, a casa, arriscando tudo, inclusive a própria vida, numa aventura tão incerta? Uma vida melhor. Trabalho honesto. Provavelmente, uma outra casa.
Olhando para estas imagens muitas pessoas serão tentadas a ver nelas a clara metáfora do naufrágio de África. Certo. Errado. As televisões mostram os pobres náufragos, magros e confusos, sendo
acolhidos nos braços dos seus salvadores. (Alguns serão depois, de novo, lançados ao mar).
As televisões não mostram nunca imagens dos belíssimos santuários ecológicos, exemplarmente bem geridos, no Botswana. Não mostram os bares de jazz em Long Street, Cape Town, cheios de jovens de todas as cores, dançando e convivendo num vibrante entusiasmo criativo.
Não mostram as ruas plácidas e limpas de Swakopmund, na Namíbia, ou os enormes prédios em construção na marginal de Luanda.
Os dirigentes europeus sabem, e têm-no repetido de forma insistente, que para deter, ou, ao menos, acalmar, as sucessivas vagas de imigração ilegal será necessário um investimento sério na pacificação, democratização e desenvolvimento dos países africanos. Os namibianos não emigram, nem tão pouco os tswanas ou os prósperos e felizes cidadãos da Ilha Maurícia.
Terminada a guerra civil, e mesmo sem democracia, os angolanos principiaram a regressar para reconstruir o país. Angola, aliás, não apenas começou a receber de volta os seus cidadãos, como tem vindo também a atrair gente do mundo inteiro, incluindo largos milhares de portugueses.
Ouço os discursos inteligentes dos dirigentes europeus. Não vejo, contudo, as acções correspondentes a tais discursos. Vejo, sim, a construção de muros cada vez mais altos, os barcos patrulhando os mares, os passageiros africanos, nos aeroportos, a serem humilhados por funcionários arrogantes dos serviços de emigração e fronteiras. Não me parece possível estabelecer uma paz sólida e duradoura sem democratizar; não me parece possível desenvolver sem primeiro pacificar e democratizar. Pergunto: o que tem feito, em concreto, a Europa, e já agora o governo português, para apoiar a democratização do continente africano?
José Sócrates foi a Angola e não falou em democracia. Nunca ouvi um único dirigente português referir-se à carência de estruturas democráticas em Moçambique ou na Guiné-Bissau. Também não conheço
programas de apoio à implementação de meios de comunicação independentes, ou de incentivo às poucas organizações não governamentais que lutam nos países africanos pelos direitos humanos, pela democracia e o desenvolvimento.
O terrorismo segue uma lógica terrivelmente simples — semeia não apenas o medo, mas sobretudo a suspeita e o rancor, e alimenta-se desse ciclo. Nos dias que correm qualquer pessoa com aparência árabe que entre num avião dificilmente escapará aos olhares de desconfiança dos restantes passageiros. Viver assim, rodeado de olhares atemorizados e acusadores, não deve ser fácil. O rancor gera rancor. Muitos jovens britânicos de origem árabe acabam por se aproximar dos movimentos islâmicos radicais, buscando uma identidade nova, por se sentirem excluídos da sociedade à qual, na verdade, já pertencem por direito e por cultura.
Tudo isto, afinal, está ligado. Aquele avião, parado na pista, em Boston, e o homem que cerra os olhos, alquebrado, tonto de fome e de luz, numa praia das Canárias. Tudo isto está cada vez mais ligado. A
democracia e o desenvolvimento serão para todos, ou não serão para ninguém.