Sobre as áreas infestadas de terroristas
O homem que viu eclodir o terrorismo no Norte de Moçambique falou hoje comigo demoradamente. Foi o tenente Vicente quem mo apresentou:
— Aqui tem o sr. China. Ele sabe tudo sobre o início do terrorismo em Moçambique.
O sr. China é um homem de cinquenta e sete anos. É paquistanês e veio estabelecer-se em Mueda há doze. É agora o proprietário de uma loja onde se vende de tudo e que se situa à saída do campo militar. É amigo dos soldados que vêem nele uma espécie de contacto com o mundo exterior.
— Pelo menos ele não é tropa — disse-me o tenente Vicente. — Ao fim do dia estamos fartos de falar dos problemas da guerra e o China constitui um escape.
Contam algumas histórias do China, que tem duas filhas, uma delas ainda solteira. Diz-se que o China oferecerá um «Mercedes» e ainda 600 contos a quem desposar a jovem. Mas também se diz que a sua proposta não será jamais aceite, pois a filha do China nada deve à beleza e muito menos à inteligência...
Há também quem diga que o China é simultaneamente aliado aos «turras» — designação por que são conhecidos os terroristas — e dos soldados portugueses. Por causa dessas afirmações, o China já foi duas vezes chamado. Mas de ambas conseguiu provar que nada tem a ver com os «turras».
— Eu quero que me deixem viver em paz — disse ele. — Tenho aqui os meus negócios e é aqui que penso terminar os meus dias.
Entre um copo de «whisky» e uns petiscos que só o China sabe preparar, foi-me descrevendo o início do terrorismo:
— Pode dizer-se que tudo começou em 20 de Agosto de 1964 quando mataram o padre Daniel, um sacerdote holandês da Missão de Nangulolo, que tinha chegado há dois meses. Parece que os «turras» o mataram por engano, julgando tratar-se do administrador de Mueda, mas eu não creio. Eles estavam dispostos a matar tudo que fosse branco. O assassínio deu-se a três quilómetros de Nangulolo, quando o padre Daniel regressava da caça. Mas antes, em 8 de Agosto, já um branco tinha aparecido morto. Era o Lopes, que foi atingido a tiro na rampa de Nacatare. No entanto, só quando mataram o padre Daniel é que os «turras» disseram que a guerra tinha começado. A pouco e pouco as populações das aldeias desapareciam para irem juntar-se no mato aos chefes do terrorismo.
E o China continuou:
— No dia seguinte ao da morte do padre eu fui à Missão e notei lá uma grande preocupação. Um dos padres chamou-me e disse-me em voz baixa: «China: está armado?»
Eu respondi:
«—Sim. Há qualquer coisa?»
«— Perigo» — disse-me o padre, afastando-se para que alguns negros que estavam ali não ouvissem o que ele dissera.
Pouco depois o mesmo padre chamou-me outra vez e disse-me:
«— Pegue nesta carta e vá entregá-la ao administrador. Há grande perigo. Eu já pedi que viesse um batalhão.»
O China disse-me depois que ficou seriamente preocupado:
— De há muito que andavam rumores no ar mas nós não acreditávamos. O administrador era o mais incrédulo e dizia sempre: «Deixem-se disso. São boatos. Não há nada. Está tudo tranquilo.»
E o China prosseguiu, depois de uma pausa:
— Em 29 de Setembro de 1964 Mueda foi atacada durante a noite. Vivemos momentos de terror. Mas a tropa já cá estava. Depois, nunca mais tivemos sossego. A guerra nunca mais acabou.
O China não se sente tranquilo. Ele vive na zona quente, está no coração da guerra que atinge o Norte moçambicano.
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In GUERRA EM MOÇAMBIQUE, do jornalista Nuno Rocha, editado em 1968
NOTA:
- Conheci pessoalmente esta família. A filha aqui referida ainda está viva( Aifa de seu nome) e neste momento está em Portugal. Entretanto casou com um ex-militar, de apelido Santos, ficando vários anos em Mueda e agora tem residência em Pemba.
- Também chamo a atenção de que o "China", na sua descrição do início da Luta Armada, não falar do Ataque ao Chai (25.09.1964). É que, 4 anos depois, tal só seria importante para a FRELIMO, pois, além do "barulho", nada mais ali aconteceu até àquele momento.
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE
FOTO: Vale de Mueda