de: Henrique Jorge Barreiro, Portugal
Mais de quarenta dias passaram desde que Bissau acordou com os tiros de uma revolta militar que opunha alguns militares ao poder de Nino Vieira, acusando-o de várias coisas e exigindo a sua demissão.
À primeira vista pouca gente acreditou que aquilo durasse muito tempo, que o assunto tivesse consistência, que a revolta não fosse dominada em pouco tempo. Mas hoje, Bissau está pejada de militares senegaleses e da Guiné Conakri (a defenderem a posição do presidente), mais de duas centenas de milhar de pessoas abandonaram a cidade como puderam, há bombardeamentos constantes, a Guiné vive a ameaça da fome e da doença a curto prazo, os eventuais auxílios humanitários são boicotados por estranhos senhores da guerra e adivinha-se uma tragédia daquelas que a África nos vem habituando com regularidade. Uma tragédia que, agora, é falada em português.
O que se passa afinal?... Um tal brigadeiro Ansumane Mané diz-se ameaçado de morte por Nino Vieira, que o acusa de roubo e tráfico de armas. Ele responde que só o querem matar, pede auxílio aos seus velhos companheiros e revolta-se. A revolta congrega o descontentamento dos antigos guerrilheiros do PAIGC e Ansumane vê-se à frente de um pequeno exército (não terão sido mais do que trezentos ou quatrocentos, no princípio) que tem muito material bélico, muita raiva, muita vontade de lutar e que parece libertar um grito contido durante muitos anos, contra o homem que foi o seu ídolo, o seu chefe, o maior guerreiro da Guiné, o presidente João Bernardo Vieira. Porquê tudo isto?...
Eu devo dizer que conheci o brigadeiro Ansumane Mané há alguns anos: nunca o ouvi abrir a boca, nem para dizer boa tarde ou bom dia, e sempre o vi com cara de poucos amigos. Quando alguém me falava dele era para me dizer que estava implicado em mais isto ou mais aquilo, sempre processos de corrupção que incluíram também o caso do desvio e venda de armas para os "guerrilheiros de Casamansa". Mas também me recordo que quando se falava destes assuntos na Guiné (o que era frequente) se dizia que quem superintendia todos os negócios, corruptos ou não corruptos, era João Bernardo Vieira. Quando da última campanha eleitoral (1994), o candidato "Cadogo" (Carlos Gomes) disse claramente que era Nino Vieira que estava à frente de tudo e acrescentou, para quem o quis ouvir, "perguntem ao meu filho de quem são efectivamente as empresas dele"... (o filho de Cadogo era do PAIGC)... "perguntem-lhe se não são todas de Nino Vieira". É claro que nunca ninguém desmentiu isto, mas será muito difícil que alguém venha alguma vez a saber bem a dimensão de todos estes "cambalachos", que sempre serão negados. Há, no entanto, algumas questões que importa revelar, porque elas mostram alguns dos aspectos do que representa esta guerra que, de repente, se declarou na Guiné.
Antes do mais, temos que entender uma coisa: Ansumane Mané é, e sempre foi, um homem de mão de Nino Vieira. Ansumane, Humberto Gomes (o CEMGFA nomeado), o Américo Bubu (que surge na comunicação social como comandante dos rebeldes de Brá) e muitos outros velhos guerrilheiros que nos aparecem como defensores da honestidade, paladinos da luta anti-corrupção, sempre foram os verdadeiros companheiros de Nino, solidários e cúmplices em tudo o que ele fez na Guiné, desde que chegou ao poder. Não!... Não acreditem que estamos em face de uma revolta contra a corrupção, porque isso não é verdade. Os que hoje lhe chamam corrupto, e lhe apontam as armas, são os mesmos que sempre carregaram e partilharam o pão, o vinho e o conduto da sua farta mesa.
Da mesma forma, ninguém deve pensar que os tais "jovens oficiais" (de quem se tem falado), que se mantiveram fora da rebelião, são os novos pretorianos da continuidade. Só lhes faltava mais esse opróbio, depois de tudo a que já foram sujeitos. Esses "jovens oficiais" são aqueles que há muitos anos vêm tentando dar uma outra estrutura às forças Armadas da Guiné, sendo boicotados sistematicamente pela casta dos chamados "combatentes da liberdade da pátria", com o seu chefe máximo que sempre foi Nino Vieira. Esses "jovens oficiais", de que são exemplo o Tenente Coronel Afonso Té, o Comandante Feliciano Gomes, o Tenente Coronel Fati, o Major Celestino, o Comandante Caetano e outros (como o saudoso Coronel Soares Cassamá), são os que andam há anos a tentar fazer umas Forças Armadas fora da alçada directa do PAIGC, umas Forças Armadas diferentes da forma como as deixaram os "conselheiros" soviéticos, transformando-as num valor de defesa da democracia. Esta ideia já fez com que alguns deles tivessem problemas graves de perseguição política, sendo obrigados a verdadeiras "travessias do deserto", que só foram ultrapassadas porque a sua competência se impôs e obrigou a que fossem reconduzidos nos cargos de que foram injustificadamente afastados.
Mas então, porque é que surge todo este problema, se os revoltosos são (ou eram) a base de sustentação do poder de Nino Vieira?... Porque, de facto, a vida na Guiné não é nada fácil para quem é pago pelo estado e os preços das coisas quase duplicaram quando o franco C.F.A. substituiu o peso guineense. Porque a "casta dos guerreiros" pós independência sempre quis um estatuto especial que expressasse o "reconhecimento da pátria, pelos sacrifícios efectuados durante a guerra colonial". Mas esse estatuto especial era, sobretudo, uma posição acima da lei, uma impunidade em delitos materiais, de maior ou menor dimensão conforme a hierarquia do poder, que não se reflecte nas graduações militares, e cujas nuances se perdem na história do próprio PAIGC.
Ora é sabido que uma das actividades que se tornou rentável para alguns militares foi a venda de armamento aos independentistas de Casamansa. Se os soviéticos encheram a Guiné de material bélico - de uma forma geral inútil -, porque não aliviar um pouco os paióis, vendendo armas a quem paga por elas? E se não é possível vendê-las legalmente, porque a Guiné e o Senegal são (teoricamente) dois países amigos, tanto melhor: vende-se ilegalmente, o dinheiro não entra nos cofres do estado, e tira-se disso um benefício pessoal, bem significativo. Foi assim mesmo que se alimentou uma cadeia que não posso afirmar até onde foi, mas posso supor que deve ter ido bem longe.
Mas entretanto, a Guiné, à beira da banca rota, começa a depender da simpatia do Senegal, para se agarrar ao franco africano, e estes negócios não são compatíveis com o novo contexto internacional em que o país se insere. Talvez alguém se tenha apercebido deste problema na altura própria, mas a verdade é que vozes diversas sempre disseram que o negócio foi continuando. Quem o continuou, pouco importa. O que está aqui em causa é que, de facto, Ansumane Mané ia pagar pelo acto e lavar a cara da Guiné perante o novo amigo do norte. O resto da história é conhecido: uma situação de insatisfação global, agravada quando da adopção do franco CFA; umas Forças Armadas incipientes porque o Nino nunca permitiu que existissem mais do que os seus amigos; e uns amigos que, de repente, encontram maior razão para proteger Ansumane Mané do que para continuarem a ser maltratados pelo presidente.
João Bernardo Vieira, o velho Nino Vieira, o temível comandante Cabi, o homem da ilha do Como - que tão tristes recordações traz a alguns portugueses -, não viu mais do que o seu nariz levantado, de chefe guerreiro africano e apertou demasiado a tenaz sobre quem passou muitos anos a ouvir falar de liberdade. Os velhos companheiros da mata, os "combatentes da liberdade da pátria" que foram a base para todas as suas chantagens políticas, gritaram "ba fatá" (a água transbordou) e disseram que Cabi era um ditador, que Cabi abusava do poder, que Cabi queria ser dono de tudo, que Cabi não podia continuar a ser o seu chefe. E, por ironia do destino, quem acaba por aparar as primeiras farpas que lhe vinham destinadas, ainda foram os tais "jovens oficiais", respeitadores da legalidade instituída e reconhecida como democrática pela comunidade internacional.
Depois disto, os dias foram passando e o poder constituido, não tendo força para dominar a situação, pede ajuda ao Senegal e à Guiné Conakri. Em pouco tempo, Bissau vê-se inundada por homens em armas que procuram desesperadamente desalojar os rebeldes do campo militar de Brá e do aeroporto. Os militares que seguraram a situação em Bissau nos primeiros dias, retiraram-se da contenda, que só poderá ter uma solução militar com uma prolongada ocupação da Guiné pelos soldados estrangeiros. Todos os dias temos notícias de bombardeamentos e mais bombardeamentos. Espera-se mais uma tentativa de assalto a Brá e ao aeroporto, que, mais tarde se verifica não ter sido conseguida dada a resistência dos homens de Ansumane Mané. Creio que por toda a Guiné já muito pouca gente respeita o homem que mandou vir os soldados estrangeiros para matar os seus irmãos guineenses, mas os dias correm, sem que se ainda se vislumbre uma solução concreta para parar aquela marcha para o abismo.
Hoje, Nino Vieira deve ser um homem só. Tão só que deve recordar com saudade os intermináveis dias de inferno e desespero da ilha do Como. Tão só que não terá quem o acompanhe numa oferta ao Irã*... E que iria ele pedir ao Irã? Que Irã o poderia ouvir se a voz dele está empastada do sangue que ele quer que continue a correr?... O Irã exige respeito pelos seus filhos e Nino já não tem respeito por ninguém.
Nino Vieira vive talvez o último delírio do dinossauro excelentíssimo, mas em breve se aperceberá que não tem ninguém para o ouvir, que não tem ninguém para governar e, muito provavelmente, não terá sequer um poilão** que receba a sua alma.
* Irã é uma figura das religiões tradicionais africanas que representa o espírito de uma antepassado.
** Poilão é uma árvore sagrada onde se recolhe a alma/espírito de alguém falecido.
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